«Ama. Pode ser fino / Como
um inglês. / É genuíno. Piedoso. // Quase sempre assassino. / É Deus.» (Hilda
Hilst) *
Charles Simic
Amigas e amigos,
Já faz algum tempo que, por mero deleite pessoal, tento traduzir textos do poeta
sérvio-americano Charles
Simic. Duas dessas tentativas foram apresentadas no
poesia.net n. 161, de maio/2006. Na presente
edição, compartilho com vocês mais seis poemas desse autor.
Simic nasceu em Belgrado, Iugoslávia, em 1938. Passou a guerra
e o imediato pós-guerra em seu país natal e mudou-se para Paris aos 15 anos. Em 1954, aos 16,
transferiu-se com a mãe e um irmão para os Estados Unidos a fim de se juntar ao
pai, que já residia lá. Charles é na verdade um apelido. Seu nome original, em
sérvio, é Dušan Simić.
Nos Estados Unidos, Simic fixou-se em Chicago e depois graduou-se em linguística
na Universidade de
Nova York. Hoje é professor emérito da Universidade de New Hampshire, onde
ensina desde 1973. Foi também editor de poesia da revista literária
nova-iorquina The Paris Review.
Simic publica poemas desde 1959, mas seu livro de estreia, What the Grass
Says (O que diz a relva) saiu em 1967. Escritor prolífico, tem quase três
dezenas de títulos somente de poesia, aí considerados os volumes de textos
inéditos e as antologias. Além de poeta, é tradutor (do francês, sérvio, croata,
macedônio e esloveno), área em que publicou 14 livros. É ainda autor de oito
títulos de ensaios.
Simic desfruta nos EUA talvez de um dos mais altos níveis de reconhecimento
público que um poeta poderia ter nos tempos atuais. Ganhou numerosos prêmios, entre os quais o Pulitzer, e em 2007 assumiu o posto de poeta laureado da Biblioteca do Congresso
americano, também conhecido como poeta laureado dos EUA. Na época, ele declarou:
"Estou especialmente tocado e honrado (...) porque sou um menino imigrante que
não falava
inglês até os 15 anos".
•o•
POETA LAUREADO
Vale a pena discutir um pouco mais sobre a função do poeta laureado. Tradição
herdada da Grã-Bretanha e mantida nos EUA e Canadá, há poetas laureados em cidades
e estados americanos, assim como na Biblioteca do Congresso.
Leio no site da Biblioteca que o poeta laureado exerce o cargo por um ano,
com atividades efetivas de setembro até
maio. Durante seu mandato, também conforme o site, "o Poeta Laureado busca
elevar a consciência
nacional para maior apreciação da leitura e da escrita de poesia". Nomes como
Elizabeth Bishop (1949-50), William Carlos Williams (1952) e Robert Frost (1958-59) ocuparam essa
posição.
Suas obrigações? Fazer uma leitura na abertura dos trabalhos poéticos anuais da
Biblioteca e uma
palestra no encerramento. Afora isso, cada laureado propõe livremente os projetos de
divulgação literária que
achar mais interessantes.
O poeta russo-americano Joseph Brodsky (Nobel de 1987) foi laureado em 1991-92.
Ele deu a ideia de
exibir poemas em aeroportos, supermercados e quartos de hotel. Outros criaram
eventos de poesia para
crianças. Há também laureados que dão ênfase ao trabalho de romancistas,
contistas e contadores de
histórias.
Atualmente, o laureado recebe um
estipêndio de 35 mil dólares
durante sua gestão. A verba vem de um fundo
criado com a doação de um
milionário e bibliófilo chamado Archer M. Huntington (1870-1955).
O poeta de cada ano é escolhido por uma comissão de antigos ocupantes do posto,
com base, segundo a lei
que regula o assunto, "exclusivamente no mérito" do escritor. Mesmo assim, há
quem critique. Eis o título de um artigo que encontrei: "Por que há tantos
poetas laureados velhos, brancos e homens?" Expressa, no caso, a justa queixa
das minorias — palavra que não se aplica bem ao caso das mulheres.
Por mais que, com olhar de brasileiros, tendamos a torcer o nariz para a ideia
de um "poeta oficial", acho
que há pelo menos um ponto interessante nessa função existente entre os britânicos, americanos
e canadenses. Trata-se,
a meu ver, do reconhecimento do Estado à poesia como forma de manifestação
artística.
•o•
ENTRE O REAL E O ABSURDO
Todos os poemas apresentados ao lado foram extraídos da mais recente antologia
do autor, New and
Selected Poems (1962-2012). Como sugere o título, esse volume reúne poemas novos
a outros selecionados
de treze livros do poeta.
Creio que o material que já li de Simic me permite identificar alguns traços
gerais em sua poesia. Um
ponto fundamental é que ele sempre trata de coisas reais e aparentemente
cotidianas, porém com
inevitáveis toques de absurdo e surrealismo.
•o•
A FÁBRICA DE BOMBAS
Veja-se, por exemplo, o poema "Pedra". Ali o narrador começa declarando seu
desejo de transformar-se
numa pedra. Estranho, sem dúvida. Porém nada fantástico ou incompreensível. Em
seguida, ele passa a
especular o que seja uma pedra, vista de fora e de dentro. Trata-se, portanto,
de uma abordagem
inusitada. Mas, ao mesmo tempo, não contém nada que se possa classificar como
hermético,
incompreensível.
Essa mesma característica aparece em vários outros poemas. Em "Escute" entra em
ação a metáfora de um
casal que trabalha à noite numa fábrica de bombas. Mais uma vez, estranho.
Também não se sabe bem por
que os dois sobem ao topo de um prédio e de lá presenciam ou imaginam cenas
trágicas.
As cenas, as situações são sempre insólitas, mas paradoxalmente as ações nunca
fogem do
trivial. Com essa
combinação de estranheza e banalidade, o poema nunca é direto, mas também não
fecha portas. Ao
contrário, abre para o leitor uma instigante nuvem de significados. Por que uma
fábrica de bombas? Por
que o trabalho noturno?
Note-se que o casal é na verdade o sujeito que fala e sua própria vida. E ele, o
narrador, diz logo no
início: "Tudo sobre você, minha / vida, é meio / faz de conta, meio realidade".
Então, pode-se pensar
no papel de quem trabalha numa fábrica de bombas. Com as próprias mãos, esse
trabalhador não mata
ninguém. Mas os artefatos que produz — ele sabe muito bem — são feitos para
matar, destruir, destroçar.
O casal Vivente-Vida seria ainda uma espécie de parceria entre ação prática (o
que se faz) e a
consciência (o que se pensa).
Aparentemente, Simic compara trabalhar numa fábrica de bombas à experiência de
subir ao topo de um
prédio sabendo que houve um incêndio mas sem poder ver suas consequências.
O
próprio casal é uma
hipótese. O texto confirma isso: "Somos como um casal [destaque meu]/
trabalhando à noite /
numa fábrica de bombas". No final há o choque de imaginar o incêndio e uma
criança desesperada saltando
do prédio com o pijama em chamas.
Enfim, como se vê, o poema se abre para uma infinidade de interpretações, todas
associáveis ao mundo
real, ao cotidiano das pessoas, às difíceis escolhas que a vida nos apresenta.
•o•
INDAGAÇÃO AO CHUMBO
Curiosamente, só agora, ao escrever esta apresentação, notei o óbvio parentesco
entre "Escute" e "Poema
sem Título". Um poema põe em questão a consciência de quem trabalha numa fábrica
de bombas. O outro
indaga diretamente ao chumbo por que o metal abriu mão do sonho alquímico de
transformar-se em ouro e
aceitou a tarefa de ser moldado em balas.
"Dezembro" e "Passarinho" são duas curtas exceções. O primeiro consiste na
descrição realista de
homens-sanduíche, no frio, exibindo cartazes de propaganda. Surge aqui outro
traço muito presente na
poesia de Simic: a ironia. Entre os cartazes, um anuncia o fim do mundo
(possivelmente alguma mensagem
religiosa) e o outro os preços de uma barbearia do bairro. Certamente, há um
profundíssimo fosso entre
o apocalipse e os preços para cabelo, barba e bigode.
Em "Passarinho", Simic se permite um intervalo puramente lírico, talvez pensando
na morte — "a
comprida sombra / que a cada noite chega mais perto de meu coração".
•o•
SANTOS E MARGINAIS
Deixei para o fim o poema mais longo, "O Iniciado". Aqui multiplicam-se as
situações e os personagens
com traços surrealistas. O cenário é Nova York à noite e nele aparecem
marginais, figuras místicas, a
rua e igrejas. Diálogos remetem à História e à memória pessoal do sujeito
lírico. Enfim, um painel que
exige uma leitura mais apurada. Vale destacar que o texto se inicia quando o narrador
encontra na rua São
João da Cruz e Santa Teresa de Ávila, padre e freira católicos quinhentistas,
considerados fundadores
da Ordem dos Carmelitas Descalços e ambos poetas.
As referências esotéricas deste poema estão diretamente ligadas às
concepções pessoais de Simic, um interessado em doutrinas místicas. Num ensaio de
seu livro Orphan Factory (1997), ele diz: "Se eu acredito em alguma
coisa, é na noite escura da alma. O temor é minha religião e o mistério é sua
igreja". Nisso, de alguma forma, ele segue a mística de São João da Cruz e
talvez se
considere um iniciado.
Mesmo nesse caso, quando estão em jogo conceitos distantes do rés do chão, o
cenário e as pessoas são comuns. O iniciado vagueia pela noite de Nova York.
Encontra figuras aparentemente esquisitas, mas nada distante de espécimes que
vemos ou conhecemos em qualquer cidade grande. Embora trafegue com frequência
pela noite
escura da alma, Simic sempre mantém o pé no chão. Nisso, acredito, reside
substancial parte da força de sua poesia.
Entrar numa pedra.
Esse seria meu caminho.
Que outros se transformem em pombos
ou rilhem seus dentes de tigre.
Eu fico feliz em ser uma pedra.
De fora, a pedra é um enigma:
ninguém sabe como decifrá-la.
Mas dentro deve ser calma e quieta,
mesmo quando uma vaca a pisa com todo o peso,
ou quando uma criança a atira no rio;
a pedra desce devagar, impassível
para o fundo do rio
onde os peixes vêm bater nela
e escutar.
Já vi centelhas saltando
de duas pedras friccionadas.
Então lá dentro talvez não seja escuro.
Talvez haja uma lua brilhando
de algum lugar, como detrás de uma colina —
com luz apenas para fazer
os estranhos escritos, os mapas de estrelas
nas paredes internas.
STONE
Go inside a stone
That would be my way.
Let somebody else become a dove
Or gnash with a tiger's tooth.
I am happy to be a stone.
From the outside the stone is a riddle:
No one knows how to answer it.
Yet within, it must be cool and quiet
Even though a cow steps on it full weight,
Even though a child throws it in a river;
The stone sinks, slow, unperturbed
To the river bottom
Where the fishes come to knock on it
And listen.
I have seen sparks fly out
When two stones are rubbed,
So perhaps it is not dark inside after all;
Perhaps there is a moon shining
From somewhere, as though behind a hill —
Just enough light to make out
The strange writings, the star charts
On the inner walls.
Vladimir Dunjic, pintor sérvio, A Mulher Apaixonada (2011)
ESCUTE
Tudo sobre você, minha vida, é meio faz de conta, meio
realidade. Somos como um casal trabalhando à noite numa fábrica de
bombas.
Vá com cuidado, um diz ao outro enquanto ele a toma
pela mão e a conduz ao topo de um prédio de onde se vê toda a
cidade.
Nessa hora, se se prestar bem atenção, ouve-se ao
longe um carro de bombeiros, mas não os gritos de socorro.
E
o silêncio se torna mais profundo quando se vê uma criança
saltando de uma janela com o pijama em chamas.
LISTEN
Everything about you, my life, is both make-believe and
real. We are like a couple working the night shift in a bomb
factory.
Come quietly, one says to the other as he takes her
by the hand and leads her to a rooftop overlooking the city.
At this hour, if one listens long and hard, one can hear a fire
engine in the distance, but not the cries for help,
just the
silence growing deeper at the sight of a small child leaping out
of a window with its nightclothes on fire.
Vladimir Dunjic, A Quinta Vida (2011), da série Nove Vidas de
Gato
DEZEMBRO
Cai neve e mesmo assim
os desvalidos vão
carregando placas-sanduíche —
uma anuncia o fim do mundo
e a outra os preços de uma barbearia próxima.
DECEMBER
It snows and
still the derelicts go
carrying sandwich boards —
one proclaiming the end of the world
the other the rates of a local barbershop.
Vladimir Dunjic, A Sétima Vida (2009), da série Nove Vidas de
Gato
PASSARINHO
Uma ave me chama da mais alta rama de meu sonho.
Me chama
do broto mais tenro da manhã da comprida sombra que a cada noite chega
mais perto de meu coração, me chama desde os confins do mundo.
THE BIRD
A bird calls me From a tall tree In my
dream.
Calls me from the pink twig of daylight From the long
shadow That inches each night closer to my heart, Calls me from the
edge of the world.
Vladimir Dunjic, Euridica (2007),
detalhe
POEMA SEM TÍTULO
Digo ao
chumbo: por que você permitiu ser moldado em bala? Esqueceu os
alquimistas? Desistiu da esperança de tonar-se ouro?
Ninguém
responde. Chumbo. Bala. Com nomes como esses o sono é longo e
profundo.
POEM WITHOUT A TITLE
I say to the lead
Why did you let yourself Be cast into a bullet? Have you forgotten the
alchemists? Have you given up hope In turning into gold?
Nobody
answers. Lead. Bullet. With names Such as these The sleep is deep
and long.
Vladimir Dunjic, quadro da série Véus
O INICIADO
São João da Cruz usava óculos
escuros quando passou por mim na rua. Santa Teresa de Ávila, bela e
circunspecta, me apareceu abrindo as asas como uma gaivota.
“Ó
alma perdida”, os dois gritaram, “onde é teu lar?”
Eu era uma das
bolas malabares da morte e a cidade um circo místico com todas as
luzes embaçadas. O espetáculo daquela noite já começara.
Numa
avenida larga e pouco iluminada, as vitrines esperavam por mim,
assistiam à minha passagem, sabiam os pensamentos em minha cabeça.
Na igreja onde, segundo os jornais, o infanticida abrigou-se
numa noite de frio, sentei-me num banco soprando as mãos.
Como um
pensamento esquecido e reevocado, a neve recente na calçada trazia
pegadas frescas — algum mestre desconhecido oferecendo-se para guiar meus
passos.
Eu não fazia ideia do que estava acontecendo. Quatro
jovens agressivos barravam meu caminho, três muito sérios e um
sorrindo como louco enquanto punha as mãos sobre mim.
Deixei que
levassem minha capa de chuva e saí dizendo a mim mesmo que era
importante manter a calma e continuar a observar a si mesmo como se
fosse alguém completamente estranho.
Num endereço que me deram,
havia letras X brancas pintadas nas janelas. Bati, mas ninguém veio
abrir. Depois, uma moça juntou-se a mim nos degraus. Seu nome era
Alma, um sinal auspicioso.
Ela conhecia uma dona de casa que
resolvia os enigmas da vida e tinha voz de rainha suméria.
Conversamos longamente sobre isso tremendo e batendo os pés.
No
século XVI, ela me disse, praticantes das ciências ocultas eram
queimados em gaiolas de ferro, ou então eram vestidos de trapos e
pendurados em forcas douradas.
Uma vez, confessei, num quarto de
hotel em Chicago avistei no espelho alguém que tinha meu rosto,
mas não lhe reconheci os olhos — dois olhos duros e oniscientes.
A fome, o frio e a falta de sono me trouxeram uma espécie de êxtase.
Andei pelas ruas como se perseguido por demônios, tentando aquecer-me.
Havia o rio East, havia o Hudson. Suas águas brilhavam à
meia-noite como óleo nas lamparinas do santuário.
Algo estava prestes
a acontecer comigo. Sobre isso não haveria mais nenhuma palavra depois.
Fiquei de pé, como se paralisado, observando o céu limpo.
Estava
tudo tão quieto que se ouviria cair um alfinete. Pensei ter escutado
um alfinete cair e comecei a procurá-lo na cidade escura e deserta.
1986-2011
THE INITIATE
St. John of the Cross wore dark
glasses When he passed me on the street. St. Therese of Avila,
beautiful and grave, Came at me spreading her wings like a seagull.
"Lost soul," they both cried out, "Where is your home?"
I was
one of death's juggling balls. The city was a mystic circus With all
of its lights dimmed, The night's performance already started.
On
a wide, poorly lit avenue, Store windows waited for me, Watched for me
coming, Knew what thoughts were on my mind.
In a church, where the
child killer, So the papers said, Hid himself one night from the cold,
I sat in a pew blowing on my hands.
Like a thought forgotten till
called forth — The new snow on the sidewalk Bore fresh footprints some
unknown master Offering to guide my steps from now on.
In truth, I
had no idea what was happening to me. Four young hoods blocked my way,
Three dead serious, One smiling crazily as he laid his hand on me.
I let them have my raincoat, And went off telling myself It was
important to remain calm, And to continue to observe oneself As if one
was a complete stranger.
At the address I'd been given, There were
white X's painted on each window. I knocked, but no one came to open.
By and by a girl joined me on the steps. Her name was Alma, a propitious
sign.
She knew a housewife Who solved life's riddles In a voice
of a Sumerian queen. We had a long chat about that While shivering and
stamping our feet.
In the sixteenth century, she told me, Dabblers
in occult sciences Were roasted in iron cages, Or else they were
clothed in rags And hanged on gibbets painted gold.
Once in a
hotel room in Chicago, I confessed, I caught sight of someone in the
mirror Who had my face, But whose eyes I did not recognize — Two
hard, all-knowing eyes.
The hunger, the cold and the lack of sleep
Brought on a kind of ecstasy. I walked the streets as if pursued by
demons, Trying to warm myself.
There was the East River, There
was the Hudson. Their waters shone at midnight Like oil in sanctuary
lamps.
Something was about to happen to me For which there would
never be any words afterward. I stood as if transfixed, Watching the
sky clear.
It was so quiet where I was. You could hear a pin drop.
I thought I heard a pin drop And went looking for it In the dark,
deserted city.