Líria Porto
Amigas e amigos,
NÚMERO 350 — E UM PEDIDO
O boletim poesia.net chega ao número 350. São três centenas e meia de edições, certamente marcadas por erros e acertos, mas sempre tentando seguir o rastro da boa poesia.
Aproveito o número redondo e expressivo desta edição para, pela primeira vez, fazer um pedido aos leitores. Se você tem amigas e amigos que gostam de poesia, convença-os a receber o boletim
por e-mail. Se você é professor/a de literatura, recomende-o a seus alunos.
Sempre relutei em fazer esse pedido. Em minha visão, poesia não é algo que se deva forçar alguém a ler. Creio que uma publicação como
poesia.net só interessa a quem nutre algum apreço pela palavra poética. Então, a intenção do pedido não é engordar a circulação do
poesia.net nem, muito menos, conquistar artificialmente um leitorado que não está nem aí para a poesia. O boletim não tem anunciantes nem patrocinadores. Por
isso, tanto faz se ele atinge apenas os atuais 4 mil assinantes ou se é lido por um contingente dez ou cem vezes maior.
Contudo, se um trabalho está sendo feito — e está disponível gratuitamente —, acredito que devo pôr de lado a timidez e propor a quem o aprova que também o divulgue. Isso, aliás, já é feito por muitos leitores.
Depois, há sempre alguém que talvez aprecie o boletim, contudo não tem sequer notícia da
existência dele.
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A poeta em foco nesta edição n. 350 é um desses artistas que de tudo e de nada conseguem extrair poesia. Digo isso porque conheço relativamente bem o trabalho criativo da mineira Líria Porto. Tive a oportunidade de ler os originais de um punhado de livros inéditos de Líria, além de parte de sua prolífica produção publicada na internet. Líria tem olhos para observar
liricamente as pequenas e as grandes coisas do mundo, e entre elas os seres humanos com seus descaminhos e paixões.
Professora e poeta, Líria Porto tem dois livros editados em Portugal — Borboletas Desfolhadas e De Lua (2009) — e dois no Brasil, Asa de Passarinho e
Garimpo (2014), este último finalista do Prêmio Jabuti em 2015. Nascida em Araguari, no Triângulo Mineiro, em 1945, a autora vive em Araxá-MG e publica textos em vários sítios da internet, especialmente
em seu blog Tanto Mar.
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Para montar a miniantologia ao lado, naveguei por extensas coleções de poemas inéditos que a própria autora me enviou e também li avulsamente outros textos publicados na internet.
A poesia de Líria Porto se caracteriza por extrema suavidade no tratamento dos
temas. Nem sempre o próprio assunto é suave, mas até mesmo a inconformidade e a revolta são apresentadas de modo contido. Em vez da explosão, da voz alta, aparecem a ironia e o humor.
São exatamente esses recursos que se destacam no poema "Olhos
Cor de Mostarda". A narradora, uma mulher, ao perceber que certo homem é capaz de apoderar-se de sua alma, afasta-o e, para que não restem dúvidas,
trata de precaver-se com armas da superstição popular: "comprei cruz / balas de prata cabeças de alho / estacas". E que (não) venha o vampiro.
Talvez a cor dos olhos do homem tão perturbador seja apenas algo raro.
Mas também é possível que se trate de uma clara indicação de sua natureza
canídea.
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Em "Descobrimento", a poeta traça um arco temporal do início ao fim da vida humana. Três curtas estrofes, cada uma contemplando uma fase da trajetória: infância, juventude, velhice. Na última, revela-se outro aspecto que se reitera na poesia de Líria Porto: o trocadilho, sempre apimentado por uma ironia triste: "a velhice é caravela / terra à vista". Ao reler o poema, nota-se que o "descobrimento" anunciado no título corresponde ao fim
da vida, e não ao início, ou à juventude. Essas sutilezas desconcertantes dão ao verso dessa artista mineira uma densidade toda especial.
No poema "Irreconhecível", Líria Porto volta a lançar mão de crendices populares. Nele,
há uma mulher canoeira que passa por baixo do arco-íris e se converte em homem. O curioso é que essa transformação de gênero tem um objetivo bem simplório, mas de significado gigante para uma mulher ribeirinha, relegada ao papel quase nulo que a sociedade patriarcal lhe reserva. Convertida em homem, de barba crescida, ela "bebia com os pescadores / contava vantagem". Aqui, Líria Porto usa fiapos de lendas do sertão para falar da condição feminina.
O mesmo tema reaparece em "Boca da Noite". Neste caso, as desarmonias amorosas entre homem e mulher são protagonizadas por dois corpos celestes — o sol e a lua. Nessa pequena fábula, o sol, com autoridade de rei, "decretou / que a lua é frígida". Isso depois de beijá-la, é claro. A vingança da lua vem nos dois versos finais: "o sol é estrela / de quinta grandeza". Uma verdade que não resolve o conflito, mas fere.
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O texto "Ninho" muda de diapasão. É mais um poema dedicado à drummondiana "procura da poesia". Embora a poeta se empenhe para encontrar essa essência fugidia, descobre-a, sem nenhum esforço, "a brincar com francisquinho / meu neto de nove meses".
Em "Marginal", cruzam-se referências metapoéticas com maldisfarçada ironia contra o rei: "meu senhor eu não sou digna / de frequentar vosso paço".
Observe-se que há também aí um trecho do Novo Testamento. Mais adiante, a mulher — poeta e marginal — declara: "meus versos trazem o estigma / a nódoa das concubinas". Além da insuperável diferença de classe, há ainda um suposto fosso moral, uma vez que a poeta é também considerada uma prostituta. Os parênteses finais correspondem a uma estocada na "fina casta" do rei.
Vem, por fim, o poemeto "Viés", uma brincadeira com ritmo e rima. Minúsculo artefato, mas que dá muito o que pensar: "a vida balança / nem cai nem haicai // a esperança? / bonsai". Uma leitura
plausível permite associar o primeiro dístico com
a expressão popular "balança mas não cai". No poema, a vida nem cai nem rende sequer um haicai. Lembra também a
frase "sem rima nem razão", do ditado inglês. O desfecho é perfeito e bem apropriado ao clima de verso japonês: resta sempre a esperança, uma
árvore verde, mas anã: bonsai.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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LANÇAMENTOS
De Mim Já Nem Se Lembra
• Luiz Ruffato
O
mineiro Luiz Ruffato lança em abril seu novo romance, De Mim Já Nem Se Lembra,
pela Companhia das Letras.
Quando: Quarta-feira, 6 de abril, às 18h30
Onde:
Livraria Cultura - Térreo Conjunto Nacional
Av. Paulista, 2073
São Paulo, SP
* O Príncipe das Nuvens
* Milênios e Outros Poemas
• Ruy Espinheira Filho
O escritor baiano Ruy Espinheira Filho está lançando dois novos livros em São Paulo:
O Príncipe das Nuvens: Uma História de Amor Ditada pelo Espírito do Poeta C.A. Maior,
romance, que sai pela editora Descaminhos; e Milênios e Outros Poemas, pela Editora Patuá.
Quando: Quinta-feira, 14 de abril, 19 horas
Onde:
Patuscada Livraria e Café
Rua Luís Murat, 40 - Vila Madalena
São Paulo, SP
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Olhos cor de mostarda
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Líria Porto
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Andre Kohn (1972-), russo, O chapéu novo
OLHOS COR DE MOSTARDA
à porta um sobressalto
por aquele homem eu não esperava
ao fitar-lhe os olhos percebi
vai querer ser dono
da minha alma
em legítima defesa eu lhe disse
a mulher que em mim procuras
não existe
nunca mais o vi
mas para assegurar-me comprei cruz
balas de prata cabeças de alho
estacas
Andre Kohn, St. Germaine pour deux
DESCOBRIMENTO
a infância é um barquinho
a transportar nossos sonhos
da enxurrada até o rio
a juventude um caiaque
a descer as correntezas
sem pensar em desembarque
a velhice é caravela
terra à vista
Andre Kohn, Mango indica
IRRECONHECÍVEL
eu tinha uma canoa — minha
boa
com ela atravessava o rio
ria
ia
beirava o horizonte
e debaixo do arco-íris
virava homem
:
a barba crescia eu voltava
bebia com os pescadores
contava vantagem
Andre Kohn, Entrada triunfal
BOCA DA NOITE
depois de beijá-la o sol decretou
a lua é frígida — e condenou-a
à solidão das virgens
:
o sol é estrela
de quinta grandeza
Andre Kohn, Série BFF n. 15
NINHO
quero alcançar a poesia
fico na ponta dos pés
ela mais se distancia
eu não sei o que fazer
quando me canso e desisto
ei-la ali — dentro do berço
a brincar com francisquinho
meu neto de nove meses
Andre Kohn, Madame Valois
MARGINAL
meu senhor eu não sou digna
de frequentar vosso paço
ponho-me nas cercanias
a espreitar vossos pares
os que registram em papiro
a vossa escrita impensável
meus versos trazem o estigma
a nódoa das concubinas
e vossa casta — tão fina
não pode ser conspurcada
(não mais do que já está)
Andre Kohn, Avô (desenho)
VIÉS
a vida balança
nem cai nem haicai
a esperança?
bonsai
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