Número 355 - Ano 14 |
São Paulo, quarta-feira, 15 de
junho de 2016 |
«O teu silêncio é uma nau com todas as velas
pandas...» (Fernando
Pessoa) *
|
|
Dalila Teles Veras
Amigas e amigos,
Embora nascida na ilha da Madeira, torrão português plantado no Atlântico, ela é uma brasileira mais ativa e nativa que muitos de nossos compatriotas. Do mesmo modo, embora seja brasileira desde criança, consegue ser mais portuguesa do que muitos lusos que nunca saíram de sua terra.
O segredo para isso é que, como diz Pessoa, a alma dela não é pequena. Poeta, sensível, sabe extrair do difícil convívio humano a pérola da solidariedade e da poesia. O que não viveu, lá ou cá, compensa com empatia,
estudo, saudades e auscultação dos desconcertos do mundo.
Estou falando de Dalila Teles Veras, a quem este boletim é dedicado. O poesia.net reconhece o trabalho de Dalila como poeta e como incentivadora cultural. Mas há outra razão para esta homenagem: no próximo dia 2 de julho, ela arredonda sete decênios de vida.
Viva Dalila!
•o•
Um fator que permitiu a Dalila Teles Veras permanecer portuguesa — apesar da fala e do
olhar brasileiros — é seu gosto pelas viagens, seja visitando lugares geográficos,
seja empreendendo vastas excursões na memória.
De viagens assim resultou seu livro mais recente, Solidões da Memória.
Nesta obra, a autora, às vésperas de completar 70 anos, entregou-se ao
exercício poético de passar a vida a limpo.
A própria estrutura do livro sugere essa abordagem. Os textos estão divididos
em cinco blocos: “Insularidade”, “Aventura em Preparo”, “Travessia e Chegada
(Ruptura)”, “Regresso ou Tentativa de” e “Registros Prévios”. Como é fácil
perceber, nos três primeiros capítulos a autora penetra fundo na memória e
relembra poeticamente a vida na ilha, a preparação da mudança para o Brasil
e as surpresas da chegada.
O bloco seguinte resulta de uma efetiva viagem de retorno à ilha da Madeira,
cumprindo um roteiro com objetivos lírico-existenciais. Por último, vêm
algumas anotações prévias que orientaram o projeto.
O arsenal lírico de Dalila Teles Veras foi reforçado pela leitura de muitos
poetas portugueses e brasileiros. Todos os poemas do livro trazem uma epígrafe
de referência, como se pode ver na pequena antologia ao lado.
Até o título do livro veio dessas leituras: foi pescado no poema “Urucungo”,
do modernista gaúcho Raul Bopp (1898-1984) que fala em (...) “solidões da
memória / coisas que ficaram no outro lado do mar”.
•o•
Passemos aos poemas. Deu trabalho, mas consegui reduzir minha seleção inicial
aos oito textos transcritos ao lado. Os três primeiros — “Educação pelo Silêncio”, “Educação Eletiva”
e “Cartografia Soletrada” — falam de parentes (avó, tia, tio emigrado) e dão notícia
de como a menina Dalila aprendia a soletrar o mundo na vida ilhoa.
“Terra sem Homens” destaca a necessidade do madeirense de deixar sua ilha e
partir em busca de melhores
condições. E os primeiros a migrar eram os homens. Isso gerava um lugar coalhado de tias e “viúvas de maridos vivos”. “Marinhas”
destaca a natureza, vista da janela: ondas e espumas. Segue-se a “Chegada”, após onze
dias de viagem na terceira classe de um navio.
Vem por fim a “Confidência da Madeirense”, na qual a poeta, com o olhar de hoje,
revisita as reflexões de Drummond sobre Itabira. A conclusão é sempre melancólica:
a Madeira não é apenas uma fotografia na parede — mas também não dói.
•o•
SOBRE DALILA
TELES VERAS
Dalila (Isabel Agrela) Teles Veras nasceu na ilha da Madeira, Portugal, em 2 de julho de 1946. Emigrou para o Brasil ainda menina, em 1957. Desde 1972, após seu casamento com o advogado e escritor Valdecírio Teles Veras, radicou-se em Santo André, no ABC Paulista, onde reside até hoje. Tem três filhas e três netos.
Poeta e cronista, publicou mais de uma dúzia de títulos. Ativista cultural, coordenou diversos projetos de divulgação literária. Foi diretora e secretária-geral da União Brasileira de Escritores (SP). Desde 1992, Dalila criou e dirige um ambiente cultural próprio, a Alpharrabio, um misto de livraria, editora e espaço para eventos, com sede em Santo André.
A Dalila poeta já apareceu neste boletim em duas outras ocasiões:
•
poesia.net n. 72, de 2004
•
poesia.net n. 331, de 2015
Para saber mais sobre a escritora, visite seu site:
www.dalila.telesveras.nom.br
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
Visite o poesia.net no Facebook:
•o•
|
Solidões da memória
|
Dalila Teles Veras
|
|
Andrew Atroshenko, russo, Dança
EDUCAÇÃO PELO SILÊNCIO
Dentro das mangas do casaco os braços de trigo,
não passaremos fome.
Teresa M.G. Jardim
rosto vincado
palavras poucas
a avó viloa
sempre de negro
(viúva por antecipação)
em silêncio, gestos
apressados, ordenhava
a cabra e, logo
o café com leite
as palavras inauditas
aquecia
em silêncio, desaparecia
em meio às videiras
, cachos a luzir nos bolsos
do avental, voltava e
em silêncio, levava-me
ao moinho (o pó do trigo
a cobrir-lhe cabelos e pestanas
— neve onde neve não havia)
na casa antiga, em pedras
alicerçada
dava-se o milagre
:
da massa para o pão
recebia um pedacinho
para moldar uma boneca
que iria ao forno e à espera
em silêncio, celebrávamos
o pacto do sangue
na pedra firmado, código
para enfrentar sortilégios
Andrew Atroshenko, Pureza
EDUCAÇÃO ELETIVA
Alguém te contempla
Desde antes do tempo começar
Murilo Mendes
a tia
(sempre haverá uma tia, na
vida de todos os seres viventes
não qualquer tia
mas aquela, para além do sangue,
a eleita
antes mesmo de o ser
aquela que contempla
e enxerga o escuro
aquela que sabe
da dor e da fome
e, garras à mostra
afugenta intrusos
acode
agasalha
acalenta
afinidade eletiva
antes mesmo de
qualquer começo)
sim, a tia
como esquecer?
Andrew Atroshenko, Dançarina carmim
CARTOGRAFIA SOLETRADA
quietos fazemos as grandes viagens
José Tolentino Mendonça
o tio
(marinheiro, remetia
cartões postais
dos portos por onde
atracava seu navio
ulisses consanguíneo
sempre voltava para
contar e, no seu
contar/inventar
reinventava-se
ficcionava-se)
soletrava cartografias
no imaginário da
destinatária
Andrew Atroshenko, Ballerina
TERRA SEM HOMENS
Mulheres que se refugiam do mal
de guerras, com as longas mãos à espera
dos excedentes da vida.
Fiama Hasse Pais Brandão
por mulheres
era composta a terra
os homens, ouvira
(pelo determinismo
compelidos)
embarcaram todos
em busca de melhor
futuro
venezuela
o lugar mítico
para onde o pai
(dois filhos, mulher grávida do terceiro)
também embarcara
as tias, viúvas de maridos
vivos, senhoras donas do lugar
(sem a paralisia dos que
à esperança o viver confiam)
comandavam e, determinadas
agiam
mãos para os afagos e o
trabalho dos dias
(se choravam, ninguém
via ou sabia)
Andrew Atroshenko, Cigana
MARINHAS
Mas, se vamos despertando
Cala a voz, e há só o mar
Fernando Pessoa
havia manhãs
em que, ao abrir da janela
era só o mar e o mar
o mar
o mar
o mar
aqui e além, barcos
quebravam em dois
o azul
inauguravam o branco
desenhavam a espuma
e não havia palavras
só as ondas
as ondas
as ondas
via, ouvia
calava
Andrew Atroshenko, Expressão arrojada
BAGAGEM
de lado a lado
a casa é uma viagem
Irene Lucília Andrade
haveria de ser grande e bonito
o baú encomendado ao tio
madeira coberta por folhas de flandres
tachas reluzentes e batique florido
(abrigar os pertences
resistir às intempéries atlânticas
e, por fim, servir de móvel
no destino novo)
ali, na austeridade da arca
a casa
reduzida ao essencial
Andrew Atroshenko, Encantadora
CHEGADA
Para a frente era só o inavegável
Sob o clamor de um sol inabitável
Sophia de Mello Breyner Andresen
onze foram os dias
enjoo, sarna e tédio
terceira classe
paquete santa maria
da terra prometida
primeiro, o recife
amarelos inaugurais
aos emigrantes, o
delimitado espaço
do porto, aos turistas
a cidade (entre)vista
do cais
(aos que vinham
para o trabalho
ver o trabalho
era o limite)
via-se
:
corpos gingantes, a estiva
torsos negros azuis suados
e o cheiro despudorado
do abacaxi a anular o resto
(o brasil tinha cheiro
e era de ananás)
Andrew Atroshenko, Dança ardente
CONFIDÊNCIA DA MADEIRENSE
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste,
orgulhoso: de ferro.
Carlos Drummond de Andrade
alguns anos vivi na madeira
principalmente nasci na madeira
por isso sou melancólica, teimosa: urze
de nascença, em luta frente às intempéries
(do solo, do vento e das vagas marítimas)
alma em permanente desassossegar
da madeira nada de material veio comigo
e não há nada que eu possa ofertar
mas da madeira vem este ar atrevido
a língua maldicente e áspera
e o hábito de tudo reclamar
atavismos que a consciência, por vezes
rejeita
a madeira não é apenas fotografias
é a memória real dos precipícios
e das vertigens
encordoamento
do que não parecia lembrado
mas é
a memória do que não foi
mas poderia
e sequer dói
|
poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2016
|
•
Dalila Teles Veras In Solidões da Memória
Dobra/Alpharrabio-Selo Donizete Galvão, São Paulo, 2015 _____________
*
Fernando Pessoa, "Hora Absurda", in Obra Poética _____________ * Imagens: quadros de
Andrew
Atroshenko (1965-), pintor russo contemporâneo
|
|