Número 359 - Ano 14

São Paulo, quarta-feira, 10 de agosto de 2016

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«Sobre teu corpo (...) / aqui estou para depositar / vergonha e lágrimas.» (Carlos Drummond de Andrade) *

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Federico García Lorca Federico García Lorca



Amigas e amigos,

Quem se interessa por poesia certamente já leu o “Romance Sonâmbulo”, o poema mais popular do livro mais conhecido do espanhol Federico García Lorca, Romanceiro Gitano. No mínimo, sabe dizer: “é aquele do verde que te quero verde”.

Pois bem, conhecer o poema, todos conhecemos. Mas quantos de nós já o lemos com a devida atenção, indo além do encantamento com as imagens e os ritmos lorquianos?

Neste boletim vamos tentar fazer, juntos, uma leitura mais detida desse poema que, desde o final dos anos 20, vem fascinando gerações no mundo inteiro.

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Mas, antes de passar ao “Romance Sonâmbulo”, retornemos algumas décadas no tempo.

Neste 19 de agosto, completam-se 80 anos da morte de Federico García Lorca, assassinado por membros da Falange Espanhola, o partido fascista do “generalíssimo” Francisco Franco, no início da Guerra Civil Espanhola.

O poesia.net, uma publicação consagrada à poesia, não poderia passar ao largo do aniversário desse crime contra um poeta, contra seu povo e contra a humanidade. Ainda mais num momento em que há no ar odores de fascismo dentro de nosso próprio país, que passa por enorme retrocesso no campo dos direitos sociais e das liberdades civis.

Esta edição é dedicada à memória de Federico García Lorca e de todos os poetas e artistas vítimas do arbítrio. Lembro ainda mais uma extensão do crime: oito décadas depois, os restos mortais do poeta nunca foram encontrados.

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Federico del Sagrado Corazón de Jesús García Lorca nasceu em 1898 em Fuente Vaqueros, perto de Granada, na região de Andaluzia, sul da Espanha. O pai era fazendeiro e a mãe, professora. Quando o menino tinha 11 anos, a família mudou-se para Granada.

Nessa época, começou a estudar piano e planejava ser músico. Depois, graças à amizade com o compositor Manuel de Falla, apaixonou-se pela cultura popular. Aluno da Universidade de Granada, viajou por várias regiões da Espanha. Em 1919 transferiu-se para a Universidade de Madri. Estudava direito e filosofia, mas envolvia-se de fato com a poesia e a produção de peças teatrais.

Os motivos para o assassinato de Lorca em 1936 nunca foram completa e satisfatoriamente esclarecidos. Embora não fosse militante, é certo que o poeta apoiava a Frente Popular, uma coalizão de esquerda que viria a ser derrotada pelos fascistas de Franco, com o apoio de Hitler. Basta lembrar o massacre de Guernica, perpetrado por aviões de guerra alemães em 1937. Também se acredita que a morte de Lorca pode estar  associada ao fato de ele ser homossexual.

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Passemos ao “Romance Sonâmbulo”, poema do livro Romanceiro Gitano, publicado em 1928. Segundo relato do próprio Lorca, desde o final dos anos 10, ele pesquisava o romance, forma poética popular, que em geral contém uma narrativa. Os romances de cordel, ainda hoje muito praticados no Nordeste brasileiro, têm origem comum com os romances ibéricos.

Em seu romanceiro (coleção de romances), Lorca voltou todas as narrativas para o contexto dos gitanos – os ciganos espanhóis, que se concentram na Andaluzia.

De todos os dezoito poemas que compõem o livro, o “Romance Sonâmbulo” é o que mais conquistou a simpatia popular. Em parte, creio, por sua história trágica, mas especialmente pela lírica refinada, na qual se mesclam imagens surrealistas com uma história dolorosamente real.

Para a leitura que faremos a seguir, sirvo-me do trabalho do mineiro José Carlos Lisboa (1902-1994), professor de língua e literatura espanhola na UFMG e na UFRJ. Apaixonado pelo Romanceiro, Lisboa escreveu Verde que te quero verde – Ensaio de interpretação do Romanceiro gitano de García Lorca, publicado em 1983 (Zahar/INL). Boa parte das indicações a seguir vêm desse livro.

Aliás, é importante dizer que Lisboa não só escreveu o ensaio como também traduziu todos os romances. Em meu ponto de vista, as traduções dele, estudioso e amante da obra lorquiana, é superior a várias outras que conheço.

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Desde o início, pode-se observar que a palavra sonâmbulo, do título, se justifica plenamente no texto. As ações são descritas dentro de uma atmosfera nevoenta, que de fato lembram um estado de sono.

Mas vamos aos fatos. A gitana apaixonada vive na casa do pai esperando o namorado, que é um marginal, caçado pela polícia. “Com sombra pela cintura / ela sonha na varanda, / verde carne, tranças verdes / com olhos de fria prata”.

“Mas quem virá? E por onde?” Após um encontro com soldados da Guarda Civil, aparece o namorado, seriamente ferido. O pai da moça o recebe. Já meio delirante, o moço propõe barganhas: “— Compadre, quero trocar / meu potro por sua casa, / meus arreios, pelo espelho, / a faca por sua manta”.

Observemos: não são apenas propostas de negócios típicas de ciganos. O homem, baleado, quer trocar símbolos de sua vida itinerante e perigosa (cavalo, arreios, faca) por objetos que indicam vida pacata e segurança familiar: casa, espelho, manta. O pai da moça diz que, se pudesse, faria as transações propostas, porém não é mais possível: “eu já não sou eu mesmo / nem mais é minha esta casa”.

O contrabandista sente que vai morrer e expressa o desejo de expirar “em cama de ferro” e “sobre lençóis de cambraia”. Sua ferida, conforme ele mesmo descreve, “sobe do peito à garganta”. O cigano mais velho repete o que disse antes. O outro pede então para subir à varanda, no andar superior, e de lá ver a lua.

Afinal, o homem ferido pergunta pela filha do “compadre”. E chega a hora mais trágica. A moça, de tanto esperar pelo namorado fora da lei, desesperou-se. É o que diz o pai. E vem a terrível revelação: “Sobre a face da cisterna / a gitana se embalava, / verde carne, tranças verdes, / os olhos de fria prata. / Um fino feixe de lua / a sustém boiando na água”.

A rapariga “amarga” suicidara-se. Entende-se, então, por que o pai repetia não ter mais o domínio de nada, nem de si mesmo nem da própria casa.

Para fechar a história, amanhece e já os guardas civis bêbados, que vinham no encalço do contrabandista, batem à porta com estardalhaço.

Tragédia gitana.

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Deixo aos leitores a degustação das metáforas e do clima de sonambulismo que fazem o encanto desse poema de García Lorca. Cito alguns exemplos: as feridas do fugitivo são “trezentas rosas morenas / sobre a camisa branca”. A moça morta na cisterna boia sustentada por “um fino feixe de lua”. Ou, ainda, “a figueira arranha o vento / com sua lixa de ramas”.

Todas essas descrições metafóricas envolvem a história num halo de sonho. O poeta também sabe retardar com maestria o desfecho da história desse amor de perdição.

Numa leitura serena e com ímpeto analítico, ainda há muitíssimo mais a apreciar neste poema.

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Embora tenha sido assassinado com apenas 38 anos, Federico García Lorca deixou extensa obra, tanto em peças teatrais como em livros de poemas, além de textos em prosa e desenhos.

Curiosidade numérica: Lorca já esteve aqui há exatamente 300 edições, no poesia.net n. 59, de 10/03/2004.


Abraço, e até a próxima,

Carlos Machado



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LANÇAMENTO

As Cores Refletidas nas Lentes de Seus Óculos Escuros
• André Caramuru Aubert


André Caramuru - CoresO poeta e romancista André Caramuru Aubert lança em São Paulo no dia 26/08 sua segunda coletânea de poemas, As Cores Refletidas nas Lentes de Seus Óculos Escuros, que sai pela Editora Patuá.


Quando:
Sexta-feira, 26/08/2016,
a partir das 19h30

Onde:
Patuscada Livraria, Bar & Café
Rua Luís Murat, 40 - Vila Madalena
São Paulo, SP



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Verde que te quero verde

Federico García Lorca


 
                                                       Tradução: José Carlos Lisboa


Joaquín Sorolla - Pepilla, a cigana, e sua filha (1910)
Joaquín Sorolla, pintor espanhol, Pepilla, a cigana, e sua filha (1910)




ROMANCE SONÂMBULO

            A Gloria Giner e a Fernando de los Ríos


Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco livre no mar
e o cavalo na montanha.
Com sombra pela cintura
ela sonha na varanda,
verde carne, tranças verdes,
os olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
À luz da lua gitana
as coisas a estão mirando
e ela não pode mirá-las.


               *

Verde que te quero verde.
Estrelas de orvalho, claras,
seguem o peixe de sombra
que abre a rota da alvorada.
A figueira arranha o vento
com sua lixa de ramas
e o monte, gato gatuno,
eriça as piteiras ásperas.
Mas, quem virá? E por onde?
Ela segue na varanda,
verde carne, tranças verdes,
sonhando no amargo mar.


               *

— Compadre, quero trocar
meu potro por sua casa,
meus arreios, pelo espelho,
a faca por sua manta.
Compadre, venho sangrando
desde os penhascos de Cabra.
— Ai, se eu pudesse, rapaz,
este trato se fechava,
mas, eu já não sou eu mesmo
nem mais é minha esta casa.
— Compadre, quero morrer
com decência, em minha cama
de ferro, se puder ser,
sobre lençóis de cambraia.
Não vês que a minha ferida
sobe do peito à garganta?
— Trezentas rosas morenas
tens sobre a camisa branca.
Teu sangue ressuma e cheira
ao redor da tua faixa,
mas eu já não sou eu mesmo,
nem mais é minha esta casa.
— Deixai-me subir ao menos
até às varandas altas.
Deixai-me subir, deixai-me
até às verdes varandas,
altas varandas da lua
por onde retumba a água.


               *

Já sobem os dois compadres
para as varandas mais altas,
deixando um rastro de sangue,
deixando um rastro de lágrimas.
Tremeluziam nas telhas
gotas de luz cor de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.


               *

Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
Os dois compadres subiram.
O longo vento deixava
um raro gosto na boca
de fel, de menta e alfavaca.
— Compadre, dize onde está,
onde, tua filha amarga?
— Quantas vezes te esperou!
quantas vezes te esperara,
cara fresca, negras tranças,
aqui na verde varanda!


               *

Sobre a face da cisterna
a gitana se embalava,
verde carne, tranças verdes,
os olhos de fria prata.
Um fino feixe de lua
a sustém boiando na água.
A noite se fez tão íntima
como uma pequena praça.
Bêbados guardas civis
chamam na porta a pancadas.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramas.
O barco livre no mar.
E o cavalo na montanha.




Joaquín Sorolla - Pescadoras valencianas (1915
Joaquín Sorolla, Pescadoras valencianas (1915)




ROMANCE SONÁMBULO

            A Gloria Giner y a Fernando de los Ríos



Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
El barco sobre la mar
y el caballo en la montaña.
Con la sombra en la cintura
ella sueña en su baranda,
verde carne, pelo verde,
con ojos de fría plata.
Verde que te quiero verde.
Bajo la luna gitana,
las cosas la están mirando
y ella no puede mirarlas.


               *

Verde que te quiero verde.
Grandes estrellas de escarcha,
vienen con el pez de sombra
que abre el camino del alba.
La higuera frota su viento
con la lija de sus ramas,
y el monte, gato garduño,
eriza sus pitas agrias.
¿Pero quién vendrá? ¿Y por dónde...?
Ella sigue en su baranda,
verde carne, pelo verde,
soñando en la mar amarga.


               *

— Compadre, quiero cambiar
mi caballo por su casa,
mi montura por su espejo,
mi cuchillo por su manta.
Compadre, vengo sangrando,
desde los montes de Cabra.
— Si yo pudiera, mocito,
ese trato se cerraba.
Pero yo ya no soy yo,
ni mi casa es ya mi casa.
— Compadre, quiero morir
decentemente en mi cama.
De acero, si puede ser,
con las sábanas de holanda.
¿No ves la herida que tengo
desde el pecho a la garganta?
— Trescientas rosas morenas
lleva tu pechera blanca.
Tu sangre rezuma y huele
alrededor de tu faja.
Pero yo ya no soy yo,
ni mi casa es ya mi casa.
— Dejadme subir al menos
hasta las altas barandas,
dejadme subir, dejadme,
hasta las verdes barandas.
Barandales de la luna
por donde retumba el agua.


               *

Ya suben los dos compadres
hacia las altas barandas.
Dejando un rastro de sangre.
Dejando un rastro de lágrimas.
Temblaban en los tejados
farolillos de hojalata.
Mil panderos de cristal,
herían la madrugada.


               *

Verde que te quiero verde,
verde viento, verdes ramas.
Los dos compadres subieron.
El largo viento, dejaba
en la boca un raro gusto
de hiel, de menta y de albahaca.
— ¡Compadre! ¿Dónde está, dime?
¿Dónde está tu niña amarga?
— ¡Cuántas veces te esperó!
¡Cuántas veces te esperara,
cara fresca, negro pelo,
en esta verde baranda!


               *

Sobre el rostro del aljibe
se mecía la gitana.
Verde carne, pelo verde,
con ojos de fría plata.
Un carámbano de luna
la sostiene sobre el agua.
La noche su puso íntima
como una pequeña plaza.
Guardias civiles borrachos,
en la puerta golpeaban.
Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
El barco sobre la mar.
Y el caballo en la montaña.

2 de agosto de 1924





Flamenco: o extinto grupo musical Ketama e o cantor Manzanita interpretam "Verde que te quiero verde", o poema de Lorca musicado por Manzanita (José M. Ortega Heredia, 1956-2004, ao centro com o violão)



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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2016


Federico García Lorca
      in José Carlos Lisboa
      Verde que te Quero Verde -

      Ensaio de Interpretação do Romancero Gitano de García Lorca
     
Zahar/INL, Rio de Janeiro/Brasília, 1983
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* Carlos Drummond de Andrade, "A Federico García Lorca",
  in Novos Poemas (1948)
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* Imagens: quadros do pintor espanhol Joaquín Sorolla (1863-1923)