Número 376 - Ano 15 |
São Paulo, quarta-feira, 10 de
maio de 2017
|
Jorge de Lima
Amigas e amigos,
O poeta alagoano Jorge de Lima (1893-1953) já apareceu duas vezes neste correio literário, nas edições n. 15 e 291. Resolvi convocá-lo para esta nova edição, enfocando apenas poemas do livro Invenção de Orfeu, publicado originalmente em 1952.
No segundo boletim sobre Jorge de Lima, falei brevemente sobre esse livro e até incluí alguns poemas dele.
Agora, tive o cuidado de não repetir nenhum dos textos já citados. Sem margem para discussão, Invenção de Orfeu é a obra mais ambiciosa do autor, o espaço onde ele exercita todo o seu inumerável talento poético, místico-religioso (católico) e surrealista.
Para organizar este boletim, andei relendo a Invenção de Orfeu numa edição dos anos 70 publicada pelo extinto Círculo do Livro. É interessante folhear essa obra num volume isolado
(ela também está na Poesia Completa do autor). O volume do Círculo tem 384 páginas. Isso para apenas um poema. Sim, porque é disso que se trata: a Invenção é um poema
único, dividido em dez cantos.
A parte mais extensa, o "Canto VIII - Biografia", vai da página 253 até a 325. Como em média são pouco mais de cinco sextilhas por página, podemos
fazer as contas e estimar que lá estão mais de 365 estrofes, ou por volta de 2200 versos! Somente esta parte já é mais densa que a maioria dos livros de poesia.
•o•
Naturalmente, vocês vão perguntar: de que trata a Invenção de Orfeu? Não sei responder. Apenas afirmo que
é uma leitura muito envolvente, um livro de poesia em seu estado mais
deslumbrante e requintado. O poeta mineiro Murilo Mendes (1901-1975), amigo, parceiro literário e primeiro leitor de muitas obras de Jorge de Lima, também confessa sua incapacidade de dizer
em que consiste essa Invenção.
No prefácio ao livro que tenho em mãos, Murilo Mendes escreve: "Repito: o grande texto — duplamente grande — deixou-me surpreso". Ele está falando dos originais, que o autor lhe dera para ler. Aliás, Mendes é que batizou a obra como Invenção de Orfeu. Mas acompanhemos o que ele diz.
"Não era fácil manejar um livro tão extenso, datilografado em leves folhas de papel, um verdadeiro labirinto de temas, faturas, imagens e tendências, uma espécie de poema cíclico, poema-rio carregando tantas formas díspares em sua densa correnteza". Como se vê, aqui ele descreve sucintamente a complexidade do texto, recheado de versos escritos em
diferentes sonoridades e medidas.
Continua Murilo Mendes: "Eu queria surpreender o núcleo do livro, sua profunda razão de ser (...) Desesperava-me de não poder agarrar o monstro com armas da intuição, da sensibilidade crítica, da lucidez e da estreita afinidade que me liga ao companheiro da selva escura".
Portanto, nem o parceiro
mais íntimo do poeta foi capaz de resumir em poucas palavras do que trata a Invenção de Orfeu. No mesmo prefácio, Mendes também diz que o estudo
para compreensão da obra deverá ser feito, lentamente, por equipes de críticos. Esse prefácio é de 1952, e foi publicado com a edição original do livro. Até hoje,
o estudo proposto por Murilo Mendes é tarefa que ainda está por ser cumprida.
•o•
Vamos aos poemas. Entre as amplas possibilidades da imensa
criação limiana, selecionei alguns trechos de diversos cantos. O poema XVIII do Canto I é uma descrição campestre combinada com a aparição de centauros que descem do "alto empíreo", o lugar onde moram os deuses. O que me encanta nesta e em várias outras criações de Jorge de Lima é a naturalidade com que ele introduz esses seres fantásticos no meio da uma paisagem rural e realista.
Vem a seguir o soneto V do Canto V. Tenho a impressão de que nestes catorze versos o vate alagoano descreve, em linguagem ao mesmo tempo real e fantasmagórica, um navio negreiro. "Verde náusea essa nau que pressagia / males a quem embarque ou desembarque", diz ele no final do primeiro quarteto. Nau e náusea.
Há também a sugestão de tráfico, de coisa execrável e clandestina. A nau deve trazer sua carga a bordo só após o início da noite. No fim, ele abre o jogo: "E ninguém sabe se essas velas, cujos / marinheiros corvejam os oceanos, / vieram trazer escravos ou levá-los". Aí, o verbo corvejar, aplicado aos marinheiros, já sugere quão sinistra é a operação da nauseante nau: transportar seres humanos sequestrados e escravizados.
Observem que os poemas até agora citados não têm nada em comum. É assim até o fim.
Também dentro do mesmo
Canto, os textos vão sendo tramados livremente, ao sabor da espetacular imaginação do poeta.
No poema VI do Canto V, aparece essa reflexão sobre a natureza dos navios. Na verdade, não somente navios: coisas da vida. "Também há as naus que não chegam / sem nunca ter naufragado". Um ponto que merece reflexão.
Na parte V do Canto VII, outro soneto. Aqui, o poeta imagina um tribunal e, em clima alucinatório, repete muitas vezes essa palavra: tribunal. Não faço ideia precisa do que isso significa. Um clima kafkiano, ilhado, sem saída. Talvez, devido à sugestão do último terceto, o poeta se refira a uma versão de juízo final. Mas não importa o que seja: o que conta, mesmo, é a alta poesia.
No bloco seguinte, pincei dois trechos do Canto VIII, o mais longo do livro, conforme já se disse acima. Esse canto é todo composto de sextilhas decassilábicas. No que chamei de Trecho 1, um exemplo da livre composição do poeta: são impressões em que entram abraços, estações, galos, auroras e timidezes. Mais uma vez, não importa o que dizem. O certo é
que nisso há poesia.
No Trecho 2, é interessante notar que o poeta assume a persona de um nauta louco que precisa escrever as coisas de que se lembra, seus périplos, suas aventuras: "os abismos de teu mar morto, não, de teu mar vivo".
Agora, o último trecho de nossa perambulação pela Invenção de Orfeu: o poema X do Canto X, mais um soneto. Uma interpretação possível: o poeta parece dizer que não busca os caminhos da "vaga palavra", que se mantém mais ou menos calma ao nível da raiz e dos vermes, embaixo da terra. Ele quer "a flor arrebatada pela fúria dos ventos", "flor de fogo a queimar-se como vela". Em sua visão, esta é "a flor das flores", a que corresponde à "árvore da vida".
Enfim, como disse Murilo Mendes no citado prefácio: "Os preguiçosos mentais e os turistas da crítica jamais decifrarão o complexo texto desta obra, que precisa ser comido e assimilado".
Mergulhemos nas águas desse poema-rio do oceânico Jorge de Lima.
•o•
O POEMA "ÁPORO" E A RESPOSTA DOS LEITORES
Agradeço às dezenas de leitores que me escreveram a propósito da
última edição,
sobre o poema "Áporo", de Carlos Drummond de Andrade. Para mim, enviar o
poesia.net é sempre uma espécie de voo cego. Não sei quem nem como vai recebê-lo.
Em casos especiais como esse do "Áporo", leitores
novos e antigos se manifestam e me permitem minimamente imaginar como pensam os destinatários
do boletim. Mais uma vez, muito obrigado.
Abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
•o•
BELCHIOR E A POESIA
O cearense Antonio Carlos Belchior (1946-2017), que nos deixou há alguns dias,
é o
compositor brasileiro mais explicitamente comprometido com a poesia. Nenhum
outro incluiu tantas referências a poetas e poemas em letras de música popular. Confiram
o artigo que escrevi para a revista Kultme:
Belchior, abraçado com a poesia
•o•
Curta o poesia.net no Facebook:
•o•
LANÇAMENTOS
Dois lançamentos para os próximos dias, um de poesia e o outro de prosa, ambos em São Paulo.
Babilônia & Outros Poemas
• Ruy Espinheira Filho
A
Editora Patuá lança Babilônia & Outros Poemas, nova coletânea do poeta, romancista e cronista baiano Ruy Espinheira Filho.
Quando: Sexta-feira, 12/05/2017,
a partir
das 19h
Onde:
Patuscada Livraria, Bar e Café
Rua Luís Murat, 40 Vila Madalena
São Paulo, SP
O Cheiro da Uvaia no Capim
• Mario Rui Feliciani
A
Dobradura Editorial e a Saracura (e-book) lançam O Cheiro da Uvaia no Capim, novo livro do contista e fotógrafo paulista Mario Rui Feliciani. Conforme o autor, trata-se de uma coleção de textos de classificação indefinida, entre contos, crônicas e poemas.
Quando: Quinta-feira, 18/05/2017,
das 19h às 23h
Onde:
Bar
Canto Madalena
Rua Medeiros de Albuquerque, 471 Vila Madalena
São Paulo, SP
|
Nas águas do poema-rio
|
Jorge de Lima
|
|
Bela de Kristo, pintor húngaro, A leitura no jardim
CANTO I - XVIII
Éguas vieram, à tarde, perseguidas,
depositaram bostas sob as vides.
Logo após borboletas vespertinas,
gordas e veludosas como urtigas,
sugar vieram o esterco fumegante.
Se as vísseis, vós diríeis que o composto
das asas e dos restos eram flores.
Porque parecem sexos; nesse instante,
os mais belos centauros do alto empíreo,
pelas pétalas desceram atraídos,
e agora debruçados formam círculos;
depois as beijam como beijam lírios.
Bela de Kristo, Casal
CANTO V - V
Dos porões vem um cheiro à maresia
mesclado a odor de ratos e de charque.
Verde náusea essa nau que pressagia
males a quem embarque ou desembarque.
Silenciosa sem que ninguém a marque
percorre ancoradouros erradia;
e é avisado o comércio que açambarque
a carga apenas escureça o dia.
Ela parece morta nos cais sujos
que lhe povoam o casco de gusanos
e a emporcalham com o limo de seus ralos.
E ninguém sabe se essas velas, cujos
marinheiros corvejam os oceanos,
vieram trazer escravos ou levá-los.
Bela de Kristo, Natureza morta com música
CANTO V - VI
Também há as naus que não chegam
mesmo sem ter naufragado:
não porque nunca tivessem
quem as guiasse no mar
ou não tivessem velame
ou leme ou âncora ou vento
ou porque se embebedassem
ou rotas se despregassem,
mas simplesmente porque
já estavam podres no tronco
da árvore de que as tiraram.
Bela de Kristo, Os noivos húngaros
CANTO VII - V
No centro um tribunal. Eu me recordo
que havia em meio à ilha um tribunal
E por mais que me esforce afastar tal
recordação, revejo o tribunal.
Levaram-me a ele. Fui. Eu me recordo.
Em torno havia um círculo fatal.
Os olhos em redor. E tudo igual.
Igual circunferência: o bem e o mal.
Ilha e tribunal; e eu, ali, no meio
e os olhos em redor. Eu me recordo.
No centro o tribunal. Ergui-me e olhei-o.
E olhou-me o tribunal em seu rebordo
de olhares sobre mim, sobre os meus erros:
e tudo em círculo entre o bem e o mal.
Bela de Kristo, Composição metafísica (1962)
CANTO VIII - TRECHO 1
Ai adeus! ai regressos! ai legiões!
abraços soluçados, gares prontas,
amplo norte, paisagens, doces galos,
quero falar palavras possuídas,
rosas claras, auroras, timidezes
na manhã, não me lembro de mais nada.
CANTO VIII - TRECHO 2
Concomitante, o poeta reversivo,
preso à raiz profunda, sem fugir,
confessado na cinza simultânea,
obrigado a tatuar-se, lousa viva
a implacável resposta: escreve nauta
teu roteiro lembrado, nauta, louco,
mesmo em ilhas vazias, mesmo só,
mesmo num grande amor, tua mensagem,
mesmo sem ter sentido a fala dádiva,
mesmo submerso em ti deves subir
os degraus liquefeitos, os abismos
de teu mar morto, não, de teu mar vivo.
Bela de Kristo, Cabeleireiro
CANTO X - X
Não a vaga palavra, corrutela
vã, corrompida folha degradada,
de raiz deformada, abaixo dela,
e de vermes, além, sobre a ramada;
mas, a que é a própria flor arrebatada
pela fúria dos ventos: mas aquela
cujo pólen procura a chama iriada
— flor de fogo a queimar-se como vela:
mas aquela dos sopros afligida,
mas ardente, mas lava, mas inferno,
mas céu, mas sempre extremos. Esta sim,
esta é que é a flor das flores mais ardida,
esta veio do início para o eterno,
para a árvore da vida que há em mim.
|
poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2017
|
Jorge de Lima • in Invenção de Orfeu
Círculo do Livro, São Paulo, sem data ______________
*
Fernando Pessoa, "Segundo / O das Quinas", in Mensagem (1934)
_______________
* Imagens: quadros de
Bela de Kristo (1920-2006),
pintor húngaro contemporâneo
|
|