Número 388 - Ano 15

São Paulo, quarta-feira, 1 de novembro de 2017

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«O tempo é este garanhão / flechado pelo cio / que atravessa a eternidade / no seu galopar sombrio.» (Francisco Carvalho)

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W.H. Auden
W.H. Auden



Amigas e amigos,

É impressionante como a memória consegue nos enganar. Eu pretendia começar este texto dizendo algo como “Esta não é a primeira vez que o poeta W.H. Auden aparece neste boletim”. Mas, ao buscar essa suposta edição, notei que estava quadradamente equivocado. (Quadrado tem arestas e incomoda mais do que redondo — não é verdade?)

Não sei por que W.H. Auden nunca apareceu antes nesta publicação. Sem a consulta tira-teima que acabo de fazer, eu seria capaz de jurar que o tal boletim existia.

A ideia, enfim, era publicar esta edição centrada em apenas um poema dele, “Funeral Blues”, aproveitando o Dia de Finados. Para outras referências, pensava eu, o leitor seria remetido ao boletim anterior.

Mas, como já vimos, aquele boletim é pura miragem. Mesmo assim, vou manter o traçado inicial. Esse será talvez um motivo para voltarmos depois ao poeta Auden.

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W.H. (Wystan Hugh) Auden (1907-1973), poeta anglo-americano, é um dos autores mais respeitados do século XX. Nasceu em York, na Inglaterra, numa família de classe média que cultivava a literatura. Escreveu seus primeiros poemas no final da década de 1920 e início dos 1930. Mudou-se para os Estados Unidos em 1939 e assumiu a cidadania americana em 1946.

Seus escritos da década de 30 na Inglaterra, de tom anticapitalista e também alertando para os perigos do totalitarismo, lhe valeram a fama de poeta de esquerda e porta-voz de sua geração.

Sua estreia se deu em 1930, com o volume Poemas, publicado por T.S. Eliot. Homossexual, Auden conheceu o poeta americano Chester Kallman (1921-1975) após a mudança para os EUA. Kallman se tornaria seu companheiro e também parceiro literário. Os dois escreveram libretos para óperas, a exemplo de The Rake’s Progress (algo como “A carreira do libertino”), de Igor Stravinsky.

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Conforme já foi dito, este boletim está focado no poema “Funeral Blues”, de Auden. Muito popular, esse lamento fúnebre foi incluído na comédia romântica britânica Quatro Casamentos e um Funeral (1994), dirigida por Mike Newell. No filme, o texto é lido durante os funerais de um personagem gay.

Há várias versões em português desse poema. Aqui, optamos pela tradução do poeta paulistano Nelson Ascher, que aliás já fez duas versões do texto. A primeira foi publicada no livro Poesia Alheia (Imago, 1998). Ao lado vai a mais recente.

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No texto, alguém pranteia a morte de uma pessoa próxima. Não se sabe o gênero da pessoa que fala. Ela pede silêncio, a fim de começar o cortejo, transportando o esquife da pessoa querida. O morto, no entanto, é do gênero masculino, uma vez que é identificado como “ele”.

Todo o discurso seguinte é de legítima tristeza e desesperação diante da perda. Recursos como pedir que os aviões escrevam no céu o anúncio da morte e as pombas fiquem de luto têm efeito poderoso.

Também são fortes os trechos como “Ele era meu norte, meu sul, meu leste e meu oeste, / minha semana de trabalho, meu domingo de descanso, / meu meio-dia, minha meia-noite, minha conversa, minha canção.”

Observem que aqui estou fazendo uma tradução literal, sem nenhuma preocupação com a expressão poética, métrica etc. A intenção é mostrar como Auden tira partido de frases simples e diretas. O final revela o completo desânimo da pessoa que fala: com a ausência do falecido, nada mais dará certo na vida.

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As frases diretas de Auden constituem um sério estorvo para quem vai traduzi-lo em português. Primeiro porque, como se sabe, o inglês é uma língua mais compacta e marcadamente monossilábica. Depois, em certo aspecto, Auden é um poeta das antigas: costuma trabalhar com versos rimados e metrificados, como neste poema.

A tradução de Nelson Ascher reflete essa dificuldade. Na primeira versão, o tradutor começou assim a última estrofe: “É hora de apagar estrelas — são molestas —”. Esse verso foi depois alterado para “Apaguem as estrelas: já nenhuma presta”, que é bem mais direto e traduz melhor o clima de “The stars are not wanted now, put out every one.” Ascher fez várias outras alterações, e por isso preferi mostrar aqui a segunda versão de seu texto.

Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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Blues para o Dia de Finados

• W.H. Auden


               Tradução: Nelson Ascher





Stanley Cursiter - Marjorie Linklater (1933)
Stanley Cursiter, artista escocês, Marjorie Linklater (1933)



BLUES FÚNEBRE

Detenham-se os relógios, cale o telefone,
jogue-se um osso para o cão não ladrar mais,
façam silêncio os pianos e o tambor sancione
o féretro que sai com seu cortejo atrás.

Aviões acima, circulando em alvoroço,
escrevam contra o céu o anúncio: ele morreu.
Pombas de luto ostentem crepe no pescoço
e os guardas ponham luvas negras como breu.

Ele era norte, sul, leste, oeste meus e tanto
meus dias úteis quanto o meu fim-de-semana,
meu meio-dia, meia-noite, fala e canto.
Julguei o amor eterno: quem o faz se engana.

Apaguem as estrelas: já nenhuma presta.
Guardem a lua. Arriado, o sol não se levante.
Removam cada oceano e varram a floresta.
Pois tudo mais acabará mal de hoje em diante.

      Tradução: Nelson Ascher



Stanley Cursiter - Musicians (1923)
Stanley Cursiter, Musicistas (1923)



FUNERAL BLUES

Stop all the clocks, cut off the telephone,
prevent the dog from barking with a juicy bone,
silence the pianos and, with muffled drums,
bring out the coffin, let the mourners come.

Let airplanes circle moaning overhead
scribbling on the sky the message: he's dead.
Put crepe-bows round the white necks of the public doves,
let the traffic policemen wear black cotton gloves.

He was my North, my South, my East and West,
my working week, my Sunday rest,
my noon, my midnight, my talk, my song.
I thought that love would last forever; I was wrong.

The stars are not wanted now, put out every one.
Pack up the moon, dismantle the sun.
Pull away the ocean and sweep up the wood.
For nothing now can ever come to any good.

(April 1936)



O ator John Hannah diz o poema “Funeral Blues” no filme Quatro Casamentos e um Funeral (1994)





Stanley Cursiter - Girl with a jug (1921)
Stanley Cursiter, Moça com jarra (1921)







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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2017



W.H. Auden
•  in Another Time
    Curtis Brown Ltd., London, 1940
•  Tradução do poema (primeira versão):
    in Ascher, Nelson
    Poesia Alheia
    Imago, Rio de Janeiro, 1998
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* Francisco Carvalho, “O Tempo”, in Rosa dos Eventos (1982)
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* Imagens: quadros do pintor escocês Stanley Cursiter (1887–1976)