Amigas e amigos,
É impressionante como a memória consegue nos enganar. Eu pretendia começar este texto dizendo algo como
“Esta não é a primeira vez que o poeta W.H. Auden aparece neste boletim”. Mas, ao buscar essa suposta
edição, notei que estava quadradamente equivocado. (Quadrado tem arestas e incomoda mais do que redondo
— não é verdade?)
Não sei por que W.H. Auden nunca apareceu antes nesta publicação. Sem a consulta tira-teima que acabo
de fazer, eu seria capaz de jurar que o tal boletim existia.
A ideia, enfim, era publicar esta edição centrada em apenas um poema dele, “Funeral Blues”, aproveitando
o Dia de Finados. Para outras referências, pensava eu, o leitor seria remetido ao boletim anterior.
Mas, como já vimos, aquele boletim é pura miragem. Mesmo assim, vou manter o traçado inicial. Esse será
talvez um motivo para voltarmos depois ao poeta Auden.
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W.H. (Wystan Hugh) Auden (1907-1973), poeta anglo-americano, é um dos autores mais respeitados do século XX.
Nasceu em York, na Inglaterra, numa família de classe média que cultivava a literatura. Escreveu seus primeiros
poemas no final da década de 1920 e início dos 1930. Mudou-se para os Estados Unidos em 1939 e assumiu a cidadania
americana em 1946.
Seus escritos da década de 30 na Inglaterra, de tom anticapitalista e também alertando para os perigos do totalitarismo,
lhe valeram a fama de poeta de esquerda e porta-voz de sua geração.
Sua estreia se deu em 1930, com o volume Poemas, publicado por T.S. Eliot. Homossexual, Auden conheceu o poeta
americano Chester Kallman (1921-1975) após a mudança para os EUA. Kallman se tornaria seu companheiro e também parceiro
literário. Os dois escreveram libretos para óperas, a exemplo de The Rake’s Progress (algo como “A carreira do
libertino”), de Igor Stravinsky.
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Conforme já foi dito, este boletim está focado no poema “Funeral Blues”, de Auden. Muito popular, esse lamento
fúnebre foi incluído na comédia romântica britânica Quatro Casamentos e um Funeral (1994),
dirigida por Mike Newell. No filme, o texto é lido durante os funerais de um personagem gay.
Há várias versões em português desse poema. Aqui, optamos pela tradução do poeta paulistano Nelson Ascher, que aliás
já fez duas versões do texto. A primeira foi publicada no livro Poesia Alheia (Imago, 1998). Ao lado vai a mais
recente.
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No texto, alguém pranteia a morte de uma pessoa próxima. Não se sabe o gênero da pessoa que fala. Ela pede silêncio,
a fim de começar o cortejo, transportando o esquife da pessoa querida. O morto, no entanto, é do gênero masculino,
uma vez que é identificado como “ele”.
Todo o discurso seguinte é de legítima tristeza e desesperação diante da perda. Recursos como pedir que os aviões
escrevam no céu o anúncio da morte e as pombas fiquem de luto têm efeito poderoso.
Também são fortes os trechos como “Ele era meu norte, meu sul, meu leste e meu oeste, / minha semana de trabalho,
meu domingo de descanso, / meu meio-dia, minha meia-noite, minha conversa, minha canção.”
Observem que aqui estou fazendo uma tradução literal, sem nenhuma preocupação com a expressão poética,
métrica etc. A intenção é mostrar como Auden tira partido de frases simples e diretas. O final revela o completo
desânimo da pessoa que fala: com a ausência do falecido, nada mais dará certo na vida.
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As frases diretas de Auden constituem um sério estorvo para quem vai traduzi-lo em português. Primeiro porque,
como se sabe, o inglês é uma língua mais compacta e marcadamente monossilábica. Depois, em certo aspecto,
Auden é um poeta das antigas: costuma trabalhar com versos rimados e metrificados, como neste poema.
A tradução de Nelson Ascher reflete essa dificuldade. Na primeira versão, o tradutor começou assim a última estrofe:
“É hora de apagar estrelas — são molestas —”. Esse verso foi depois alterado para “Apaguem as estrelas: já nenhuma presta”,
que é bem mais direto e traduz melhor o clima de “The stars are not wanted now, put out every one.” Ascher fez
várias outras alterações, e por isso preferi mostrar aqui a segunda versão de seu texto.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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