Amigas e amigos,
Este boletim é quinzenal (quarta-feira sim, quarta-feira não). Contudo, para fazer o operário em construção, de Vinicius, rimar com
o 1° de Maio, Dia do Trabalho, decidi antecipar esta edição em uma semana. Assim, não haverá um boletim na data esperada: 6 de maio.
Aproveito para dedicar esta edição aos trabalhadores da saúde (médicxs, enfermeirxs,
auxiliares etc.), esses titãs que hoje, em tempos de pandemia, sustentam nas mãos o bem mais precioso de milhares de pessoas — a vida.
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Vivemos num momento de altíssima tecnologia, quando tudo parece acontecer graças aos poderes de uma varinha de condão do Google ou por obra de algum truque de
geolocalização (GPS, para os íntimos). Tudo virtual.
Nesse contexto, uma das coisas que pessoalmente me incomodam é a falsa democracia do celular. Todo mundo, do morador de favela ao
mais alto executivo do banco, carrega
uma dessas maquininhas (às vezes, mais de uma). E somos todos iguais perante o WhatsApp.
Deixemos bem claro: nada contra a tecnologia. Que se instalem os mais sofisticados dispositivos, as mais intrincadas inteligências
artificiais. Mas que elas venham em benefício de todos, não como ferramentas de domínio
e controle de uns poucos sobre os demais.
Retomemos o eixo: o trabalho. Diante dessa névoa “democrática”, o pão parece pousar em nossas mesas como por um passe de mágica. Esquecemos
a longa sequência de pessoas que plantam, colhem, labutam nas fazendas, minas e fábricas. Esquecemos também os trabalhadores em serviços, que
não fazem o pão, mas se dedicam a uma miríade de atividades que facilitam nossa
vida...
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O poema discutido nesta edição celebra o trabalhador e o mundo do trabalho. Lembrei-me dele ao pensar nessa “névoa” de esquecimento e no 1° de Maio, o Dia
do Trabalho. Refiro-me ao poema “O Operário em Construção”, do poeta, compositor musical e cronista carioca Vinicius de Moraes (1913-1980).
Publicado originalmente no livro Novos Poemas II, de 1959, esse romance — no sentido ibérico de poema narrativo,
trovadoresco, como os textos do Romanceiro Gitano, de García Lorca e nossos folhetos de cordel — constitui um dos pontos áureos da
vertente social na poesia de Vinicius de Moraes.
Vinicius inspira-se num trecho do evangelho de Lucas. É o momento no qual, segundo a Bíblia, Cristo se recolhe para jejuar
durante 40 dias e 40 noites no deserto. Então, quando ele já estava enfraquecido pelo longo jejum, o Diabo aparece para tentá-lo,
oferecendo-lhe “todos os reinos do mundo”. Cristo resiste.
Uma curiosidade. No volume Poesia Completa e Prosa (Nova Aguilar, 1986), a epígrafe bíblica desse poema dá o trecho
da tentação de Cristo como parte do capítulo V do evangelho de Lucas. Conferi em duas traduções da Bíblia
(uma protestante e uma católica) e verifiquei que o episódio citado está na verdade no capítulo 4, ou IV. Na transcrição ao lado,
introduzi esta discreta correção.
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Passemos à leitura do poema. Nos primeiros versos, o trabalhador não compreende sua posição na sociedade.
Um dia, porém, ele toma consciência de sua importância. Escreve Vinicius: “De forma que, certo dia /
À mesa, ao cortar o pão / O operário foi tomado / De uma súbita emoção / Ao constatar assombrado / Que tudo naquela mesa / — Garrafa, prato, facão — / Era ele
quem os fazia / Ele, um humilde operário, / Um operário em construção”. O trabalhador percebeu mais ainda: era ele quem fazia tudo: não só o que
podia ser visto imediatamente ao seu redor, mas tudo mesmo: “Casa, cidade, nação!”
Nesse momento, diz o poeta, o operário ampliou-se em múltiplas direções: “cresceu em alto e profundo / em largo e no coração”. Com isso, adquiriu “a dimensão
da poesia”. Assim, passou a conversar com os colegas de trabalho, tornou-se uma liderança. “O que o operário dizia / Outro operário escutava”.
Com esses dois movimentos — a tomada de consciência dos processos de sua própria vida e sua aproximação a outros trabalhadores —, o operário muda
sua atitude. Ele, “que sempre dizia sim / Começou a dizer não”.
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Como se poderia esperar, o patrão recomenda aos seus capangas que “convençam” o trabalhador a pensar diferente. Não é difícil adivinhar que os
argumentos usados para dissuadi-lo são a mais brutal violência. “Teve seu rosto cuspido / Teve seu braço quebrado / Mas quando foi perguntado /
O operário disse: Não!”.
Chega, então, o momento “bíblico”. Já que não consegue dobrar o operário pela força, o patrão, repetindo a tentação de Cristo, resolve corromper o empregado.
Leva-o ao ponto mais alto da construção, promete a ele mundos e fundos para que passe a ver as coisas pelo
seu ponto de vista, de patrão. “E o operário disse: Não!”.
Era, no dizer do poeta, a voz do operário construído, não mais em construção.
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Não é a primeira vez que Vinicius de Moraes —
poeta, cantor, compositor, autor teatral e cronista — comparece a este boletim. Ele já esteve aqui em três outras oportunidades:
* poesia.net n. 300 (2013)
* poesia.net n. 240 (2007)
* poesia.net n. 12 (2003)
Visite o site do poeta:
viniciusdemoraes.com.br
— um dos raros casos em que os herdeiros da obra de um grande autor se dispõem a compartilhar com o público informações, textos, fotos, áudio e vídeo.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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