Amigas e amigos,
O mundo artístico e literário brasileiro sofreu um duplo golpe nos últimos dias, com a morte de dois poetas: Armando Freitas Filho,
em 26 de setembro, e Antonio Cicero, em 23 de outubro. Nesta edição, o poesia.net revisita boletins dedicados aos
dois poetas e faz a eles uma singela homenagem.
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ARMANDO FREITAS FILHO (1940-2024)
Considerado um dos poetas mais importantes da poesia brasileira, Armando Freitas Filho (Rio de Janeiro, 1940-idem-2024), trabalhou
na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Conselho Federal de Cultura, no Instituto Nacional do Livro,
na Fundação Biblioteca Nacional e na Funarte.
Em 2003, reuniu no volume Máquina de Escrever toda a sua produção poética até então. Nesse livro estão desde Palavra,
seu livro de estreia, de 1963, até Numeral/Nominal, de 2003. Conforme o poeta, dos treze livros enfeixados em
Máquina de Escrever, somente dois — Dual (1966) e Marca Registrada (1970) — foram substancialmente cortados
e modificados. Não por acaso, esses dois livros são exatamente aqueles que ele aponta como associados à poesia práxis,
o movimento de vanguarda ultrarrival da poesia concreta, liderado pelo paulista
Mário Chamie.
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A partir dos livros seguintes — De Corpo Presente (1975) e À Mão Livre (1979) —, Armando Freitas Filho aproxima-se
mais do racionalismo de João Cabral de Melo Neto. O poeta também manteve intensa convivência com os autores cariocas da chamada
“geração marginal” e parece ter incorporado um pouco da dicção coloquial e prosaica desses poetas. Isso pode ser constatado em
livros como o já citado À Mão Livre e ainda em Longa Vida (1982) e 3x4 (1985). Aí também se destaca o erotismo
sem véus plasmado pelo autor, especialmente no primeiro livro.
Após o lançamento da poesia reunida em Máquina de Escrever, Armando Freitas Filho ainda publicou quatro coletâneas:
Raro mar (2006); Lar (2009); Dever (2013); e Rol (2016). Interessante: tanto nestes quatro últimos livros
como em todos os outros do autor, observa-se um esforço em criar títulos de sugestão palpável e trivial, sem abstrações.
Neste boletim, transcrevemos poemas de três compêndios do poeta: Palavra, a obra inaugural, Números Anônimos,
de 1994, e Numeral/Nominal. Do primeiro, você pode ler ao lado os poemas “16” e “23”, exercícios metalinguísticos que
se propõem a definir o ato de escrever. Ambos os textos começam com “Escrever é...”.
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De “Nominal” (primeira parte do livro Nominal/Numeral) vem o poema “Manual da Máquina CDA”, uma tentativa à la
Cabral de decifrar os mecanismos de Carlos Drummond de Andrade. Esse “Manual” faz parte de uma sequência de poemas dedicados
a Drummond, iniciada por um que se chama “CDA no coração”, no qual Armando Freitas Filho declara: “Drummond é Deus.
Pai inalcançável. / Não reconhece os filhos. A mão ossuda / e dura, de unhas rachadas, não abençoa: / escreve, sem querer,
contudo, a vida / de cada um, misturada com a sua”.
Os dois próximos poemas foram extraídos de Números Anônimos (1994). Nesses textos o poeta se desloca em “sucessivos ônibus,
táxis, metrô”. No meio de uma cacofonia de samba, funk e fuzis AR-15, surge uma “cidade engatilhada". A tragédia brasileira,
em sua versão Rio de Janeiro, atravessa o ritmo do poeta.
Para encerrar a amostra, comparece o poema “Corpo”. Esta, aliás, é uma das palavras-chave do poeta, pois perpassa com insistência
toda a sua obra. O corpo, esse “acrobata enredado / em clausura de pele”, ou “engenho de febre / sono e lembrança”.
Armando Freitas Filho faleceu, no Rio de Janeiro em 26/09/2004, aos 84 anos, deixando esposa, dois filhos e dois netos.
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ANTONIO CICERO (1945-2024)
Passemos agora ao poeta Antonio Cicero. Escritor, filósofo, ensaísta, cronista, compositor e membro da Academia Brasileira de Letras,
Antonio Cicero Correia Lima (Rio de Janeiro, 1945-Zurique, Suíça, 2024) estreou na poesia com o livro Guardar (1996).
Publicou, depois, os títulos A Cidade e os Livros (2002); e Porventura (2012).
Incansável blogueiro, o poeta manteve, de 2007 até 2023, a página Acontecimentos,
na qual apresenta refinada seleção de poemas das mais diversas procedências, além de discussões acerca de arte e poesia.
Irmão da cantora e compositora Marina Lima, Antonio Cicero também apresentou outra faceta artística: compôs letras de canções em parceria com
a irmã e com outros músicos, como Lulu Santos e Claudio Zoli.
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Mas vamos à poesia de Antonio Cicero. A minisseleta ao lado foi extraída do volume Estranha Alquimia (2020), organizada pelo poeta Diego
Mendes Sousa para a Editora Penalux, com a colaboração de Fabio de Sousa Coutinho.
O primeiro poema, “Guardar”, é talvez um dos mais conhecidos com a assinatura de Antonio Cicero. Nele se destaca o gosto argumentativo e
categorizante que o poeta-filósofo cultiva em muitos de seus textos. “Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro / do que pássaros sem voo”.
Um poema para se ler com cuidado e atenção.
Mas não se engane com o tom altamente reflexivo de “Guardar”. Antonio Cicero consegue também mesclar esse mesmo tom com os influxos da
realidade imediata. É o que se lê no quarteto “Leblon”. Aí o menino carioca, criado de frente para o mar, lembra que nem tudo se resume
ao clichê (visualmente verdadeiro) da Cidade Maravilhosa: “atrás há um muro e aquém do olhar / pulsam sangue e morro e mata e breu”.
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No soneto “O Grito”, o sujeito lírico se sente como um mitológico Prometeu (“Estou acorrentado a este penhasco / logo eu que roubei o
fogo dos céus”) perdido no cotidiano moderno das “urbes formigantes”. Descrente de tudo, ele ouve o conselho de um amigo, que lhe
recomenda fazer uma excursão por uma empresa que aceita o pagamento em prestações.
“Blackout” é outro poema que respira o ar da metrópole. Nele surge o problema da privacidade para quem mora em prédios contíguos,
exposto aos olhares de mil janelas. A preocupação, neste caso, é expressa por um poeta: “Que voyeur me espiaria?”, pergunta.
Será que algum vizinho indiscreto seria capaz de ler seus versos na tela do computador?
No último poema surge, mais uma vez, uma figura da mitologia grega. É “Ícaro” que salta para o céu e, inevitavelmente, dá adeus a tudo
enquanto mergulha no mar. Em certo sentido, repete-se aqui a cena de “Leblon”, mais acima. Naquele poema, o olhar do menino se dirige
ao céu, mas a realidade o confronta com a terra e todos os intrincados problemas que ela esconde, bem às costas de quem mira o azul.
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Antonio Cicero foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2017. Recentemente, após receber o diagnóstico de que sofria do mal
de Alzheimer, o poeta decidiu submeter-se aos procedimentos de morte assistida (eutanásia). Assim, mudou-se para Zurique, na Suíça,
país onde essa prática é legalizada. A morte do escritor ocorreu no dia 23 de outubro.
Além da perda do artista, causou imenso choque e emoção a carta deixada pelo poeta explicando sua decisão pela eutanásia. Eis alguns
trechos.
(...) minha vida tornou-se insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que
ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.
(...) Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não
sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade. Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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