Número 540 - Ano 22

Salvador, quarta-feira, 30 de outubro de 2024

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«Nasceram-me gaivotas nos sentidos.» (Affonso Manta) *

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Armando Freitas Filho e Antonio Cicero
Armando Freitas Filho e Antonio Cicero


Amigas e amigos,

O mundo artístico e literário brasileiro sofreu um duplo golpe nos últimos dias, com a morte de dois poetas: Armando Freitas Filho, em 26 de setembro, e Antonio Cicero, em 23 de outubro. Nesta edição, o poesia.​net revisita boletins dedicados aos dois poetas e faz a eles uma singela homenagem.

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ARMANDO FREITAS FILHO (1940-2024)

Considerado um dos poetas mais importantes da poesia brasileira, Armando Freitas Filho (Rio de Janeiro, 1940-idem-2024), trabalhou na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Conselho Federal de Cultura, no Instituto Nacional do Livro, na  Fundação Biblioteca Nacional e na Funarte.

Em 2003, reuniu no volume Máquina de Escrever toda a sua produção poética até então. Nesse livro estão desde Palavra, seu livro de estreia, de 1963, até Numeral/Nominal, de 2003. Conforme o poeta, dos treze livros enfeixados em Máquina de Escrever, somente dois — Dual (1966) e Marca Registrada (1970) — foram substancialmente cortados e modificados. Não por acaso, esses dois livros são exatamente aqueles que ele aponta como associados à poesia práxis, o movimento de vanguarda ultrarrival da poesia concreta, liderado pelo paulista Mário Chamie.

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A partir dos livros seguintes — De Corpo Presente (1975) e À Mão Livre (1979) —, Armando Freitas Filho aproxima-se mais do racionalismo de João Cabral de Melo Neto. O poeta também manteve intensa convivência com os autores cariocas da chamada “geração marginal” e parece ter incorporado um pouco da dicção coloquial e prosaica desses poetas. Isso pode ser constatado em livros como o já citado À Mão Livre e ainda em Longa Vida (1982) e 3x4 (1985). Aí também se destaca o erotismo sem véus plasmado pelo autor, especialmente no primeiro livro.

Após o lançamento da poesia reunida em Máquina de Escrever, Armando Freitas Filho ainda publicou quatro coletâneas: Raro mar (2006); Lar (2009); Dever (2013); e Rol (2016). Interessante: tanto nestes quatro últimos livros como em todos os outros do autor, observa-se um esforço em criar títulos de sugestão palpável e trivial, sem abstrações.

Neste boletim, transcrevemos poemas de três compêndios do poeta: Palavra, a obra inaugural, Números Anônimos, de 1994, e Numeral/Nominal. Do primeiro, você pode ler ao lado os poemas “16” e “23”, exercícios metalinguísticos que se propõem a definir o ato de escrever. Ambos os textos começam com “Escrever é...”.

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De “Nominal” (primeira parte do livro Nominal/Numeral) vem o poema “Manual da Máquina CDA”, uma tentativa à la Cabral de decifrar os mecanismos de Carlos Drummond de Andrade. Esse “Manual” faz parte de uma sequência de poemas dedicados a Drummond, iniciada por um que se chama “CDA no coração”, no qual Armando Freitas Filho declara: “Drummond é Deus. Pai inalcançável. / Não reconhece os filhos. A mão ossuda / e dura, de unhas rachadas, não abençoa: / escreve, sem querer, contudo, a vida / de cada um, misturada com a sua”.

Os dois próximos poemas foram extraídos de Números Anônimos (1994). Nesses textos o poeta se desloca em “sucessivos ônibus, táxis, metrô”. No meio de uma cacofonia de samba, funk e fuzis AR-15, surge uma “cidade engatilhada". A tragédia brasileira, em sua versão Rio de Janeiro, atravessa o ritmo do poeta.

Para encerrar a amostra, comparece o poema “Corpo”. Esta, aliás, é uma das palavras-chave do poeta, pois perpassa com insistência toda a sua obra. O corpo, esse “acrobata enredado / em clausura de pele”, ou “engenho de febre / sono e lembrança”.

Armando Freitas Filho faleceu, no Rio de Janeiro em 26/09/2004, aos 84 anos, deixando esposa, dois filhos e dois netos.

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ANTONIO CICERO (1945-2024)

Passemos agora ao poeta Antonio Cicero. Escritor, filósofo, ensaísta, cronista, compositor e membro da Academia Brasileira de Letras, Antonio Cicero Correia Lima (Rio de Janeiro, 1945-Zurique, Suíça, 2024) estreou na poesia com o livro Guardar (1996). Publicou, depois, os títulos A Cidade e os Livros (2002); e Porventura (2012).

Incansável blogueiro, o poeta manteve, de 2007 até 2023, a página Acontecimentos, na qual apresenta refinada seleção de poemas das mais diversas procedências, além de discussões acerca de arte e poesia.

Irmão da cantora e compositora Marina Lima, Antonio Cicero também apresentou outra faceta artística: compôs letras de canções em parceria com a irmã e com outros músicos, como Lulu Santos e Claudio Zoli.

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Mas vamos à poesia de Antonio Cicero. A minisseleta ao lado foi extraída do volume Estranha Alquimia (2020), organizada pelo poeta Diego Mendes Sousa para a Editora Penalux, com a colaboração de Fabio de Sousa Coutinho.

O primeiro poema, “Guardar”, é talvez um dos mais conhecidos com a assinatura de Antonio Cicero. Nele se destaca o gosto argumentativo e categorizante que o poeta-filósofo cultiva em muitos de seus textos. “Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro / do que pássaros sem voo”. Um poema para se ler com cuidado e atenção.

Mas não se engane com o tom altamente reflexivo de “Guardar”. Antonio Cicero consegue também mesclar esse mesmo tom com os influxos da realidade imediata. É o que se lê no quarteto “Leblon”. Aí o menino carioca, criado de frente para o mar, lembra que nem tudo se resume ao clichê (visualmente verdadeiro) da Cidade Maravilhosa: “atrás há um muro e aquém do olhar / pulsam sangue e morro e mata e breu”.

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No soneto “O Grito”, o sujeito lírico se sente como um mitológico Prometeu (“Estou acorrentado a este penhasco / logo eu que roubei o fogo dos céus”) perdido no cotidiano moderno das “urbes formigantes”. Descrente de tudo, ele ouve o conselho de um amigo, que lhe recomenda fazer uma excursão por uma empresa que aceita o pagamento em prestações.

“Blackout” é outro poema que respira o ar da metrópole. Nele surge o problema da privacidade para quem mora em prédios contíguos, exposto aos olhares de mil janelas. A preocupação, neste caso, é expressa por um poeta: “Que voyeur me espiaria?”, pergunta. Será que algum vizinho indiscreto seria capaz de ler seus versos na tela do computador?

No último poema surge, mais uma vez, uma figura da mitologia grega. É “Ícaro” que salta para o céu e, inevitavelmente, dá adeus a tudo enquanto mergulha no mar. Em certo sentido, repete-se aqui a cena de “Leblon”, mais acima. Naquele poema, o olhar do menino se dirige ao céu, mas a realidade o confronta com a terra e todos os intrincados problemas que ela esconde, bem às costas de quem mira o azul.

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Antonio Cicero foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 2017. Recentemente, após receber o diagnóstico de que sofria do mal de Alzheimer, o poeta decidiu submeter-se aos procedimentos de morte assistida (eutanásia). Assim, mudou-se para Zurique, na Suíça, país onde essa prática é legalizada. A morte do escritor ocorreu no dia 23 de outubro.

Além da perda do artista, causou imenso choque e emoção a carta deixada pelo poeta explicando sua decisão pela eutanásia. Eis alguns trechos.

(...) minha vida tornou-se insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.

(...) Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade. Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Dois poetas de hoje


• Armando Freitas Filho  • Antonio Cicero


              



Jean Hildebrant - Al aire libre
Jean Hildebrant, pintora estadunidense, Al aire libre


• Armando Freitas Filho

NUMERAL

16

               Para Mário Rosa
Escrever é arriscar tigres
ou algo que arranhe, ralando
o peito na borda do limite
com a mão estendida
até a cerca impossível e farpada
até o erro — é rezar com raiva.
14 VIII 2001

23

Escrever é riscar o fósforo
e sob seu pequeno clarão
dar asas ao ar — distância, destino
segurando a chama contra
a desatenção do vento, mantendo
a luz acesa, mesmo que o pensamento
pisque, até que os dedos se queimem.
10 XII 2001
               De Numeral/Nomimal, 2003

MANUAL DA MÁQUINA CDA

A máquina é de pedra e pensamento.
Funciona sem água, deslizando
seu lençol de laje e lembrança
aberto e desperto por natureza.
Tem por motor o atrito, a tração
a alavanca que levanta quem lê
e o modela, diferente, a cada passada
pois se faz também diversa:
novos perfis que se enfrentam
assimétricos, e que não esperam
o encaixe certo, feito à régua
mas o impossível, irregular, sem
efes-e-erres, com recortes irritados
se aproximando, como no boxe —
através do choque, onde se juntam —
íntimos, podendo parecer ternos
apesar dos dentes, roldanas, o amor
arranca, em chão de escorpião.
Quando revista, de perto, por dentro
a máquina — que não se passa a limpo —
se compreende um pouco do engenho
do mecanismo de suas linhas partidas.
               De Numeral/Nomimal, 2003



Jean Hildebrant - Apache song
Jean Hildebrant, Canção apache


[FURO O SINAL VERMELHO]

Furo o sinal vermelho
que não me estanca
sangrando a seta do lado esquerdo
me enfio por agulhas, gargalos
gargantas, o mar está à margem
tem pressa, mas não sai do lugar
engarrafado, e ainda que felino
enferruja em frente à praia
enquanto rodo o Rio todo e tomo
sucessivos ônibus, táxis, metrô
e cada dia é irreparável
o corpo não tem férias
vai no arrastão, com a roupa da hora
sempre ao alcance de balas além
não fica em nenhuma parada
não salta, passa do ponto
queima a inflamável vida
enquadrado pelo sol, carburante
vencendo túneis
nadando no seu próprio sangue.
               De Números Anônimos, 1994

[A CIDADE ATRAVESSA O DIA]

A cidade atravessa o dia
engatilhada.
Anônimo, mata ao acaso
e escapa, acossado
atirando para o alto
no alvo do sol certeiro.

Antes da pena d'água
o mar aberto se debate
inumerável, perdido
diante de palmeiras selvagens
temperado em heróica
e lírica consonância
com a lagoa inesperada
na boca seca do túnel
com o céu
reagindo no reflexo
tentando subir se salvar
mas resvala na pedra
isolado.

A noite afinal dispara.
Vou no vácuo, no intervalo
harmônico
entre dor e nada
acuado em corpo único
vivendo do próprio fígado.
               De Números Anônimos, 1994

CORPO

Acrobata enredado
em clausura de pele
sem nenhuma ruptura
para onde me leva
sua estrutura?

Doce máquina
com engrenagem de músculos
suspiro e rangido
o espaço devora
seu movimento
(braços e pernas
sem explosão)

Engenho de febre
sono e lembrança
que arma
e desarma minha morte
em armadura de treva.
               De Palavra, 1963


Jean Hildebrant - Blue
Jean Hildebrant, Azul


• Antonio Cicero

GUARDAR

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro
do que pássaros sem voos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarde um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.

LEBLON

Para Adriano Nunes

O menino olha para o mar:
lá no fundo ele se funde ao céu;
mas atrás há um muro e aquém do olhar
pulsam sangue e morro e mata e breu.

O GRITO

Estou acorrentado a este penhasco
logo eu que roubei o fogo dos céus.
Há muito tempo sei que este penhasco
não existe, como tampouco há um deus
a me punir, mas sigo acorrentado.
Aguardam-me amplos caminhos no mar
e urbes formigantes a engendrar
cruzamentos febris e inopinados.
Artur diz “claro” e recomenda um amigo
que parcela pacotes de excursões.
Abutres devoram-me as decisões
e uma ponta do fígado mas digo:
E daí? Dia desses com um só grito
eu estraçalho todos os grilhões.



Jean Hildebrant - Sunlight and solace
Jean Hildebrant, Luz do sol e consolação


BLACKOUT

Passo a noite a escrever.
Do lado de lá da rua
poderia alguém me ver,
daquele prédio às escuras,
em frente ao meu, e mais alto.
Que voyeur me espiaria?
De interessante, só faço
escrever. Ele veria
decerto a parte traseira
do computador; talvez,
daquela outra janela,
avistasse, de viés,
o lado esquerdo da minha
face de perfil; jamais
entretanto enxergaria
certos versos de cristal
líquido que, mal secreto
com o sal do meu suor,
e já anunciam segredos
só meus e de algum leitor
que partilhará comigo
o paraíso e o desterro,
o pranto que vem do riso,
o acerto que vem do erro.
Disso tudo, meu vizinho
nem de longe desconfia.
Mas e se ele, tendo lido
meus lábios, que pronunciam
o que na tela está escrito,
perceber-se desterrado
não só do meu paraíso:
do meu desterro, coitado?
E se ele a tudo atentar
e por inveja e recalque
me der um tiro de lá?
Melhor fechar o blackout.

ÍCARO

Buscando as profundezas do céu
conheceu Ícaro as do mar

Adeus poeira olímpica
grãos da Líbia
barcos de Chipre

Adeus riquezas de Átalo
vinhos do Mássico
coroas de louro
flautas e liras

Adeus cabeça nas estrelas
adeus amigos
mulheres
efebos
adeus sol:
ouro algum permanece.



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Carlos Machado, 2024



 Armando Freitas Filho
   in Máquina de Escrever - Poesia Reunida e Revista
   Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2003
 Antonio Cicero
   in Estranha Alquimia (antologia poética)
   org. Diego Mendes Sousa, colab. Fabio de Sousa Coutinho
   Penalux, Guaratinguetá, 2020
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* Affonso Manta, "O Aprendiz", in Antologia Poética (2013)
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* Imagens: quadros da pintora estadunidense Jean Hildebrant