Número 541 - Ano 22

Salvador, quarta-feira, 13 de novembro de 2024

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«Um pouco mais de sol — eu era brasa. / Um pouco mais de azul — eu era além.» (Mário de Sá-Carneiro) *

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Diego Vinhas
Diego Vinhas


Amigas e amigos,

Nascido em Fortaleza em 1980, Diego Vinhas já publicou três livros de poesia: Primeiro as Coisas Morrem (2004), Nenhum Nome Onde Morar (2014) e Corvos Contra a Noite (2020), todos pela editora 7Letras. Graduado em direito pela Universidade Federal do Ceará, Vinhas trabalha como defensor público.

Adquiri, recentemente, os dois livros mais recentes do autor. Na leitura, percebe-se que a poesia de Diego Vinhas reflete a crueza dos tempos atuais. Observador atento, o poeta inspira-se muitas vezes no noticiário dos jornais e nas peripécias do dia a dia.

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Para a microantologia da presente edição, selecionei quatro poemas de Diego Vinhas. Os três primeiros vêm do livro Corvos Contra a Noite e o último, de Nenhum Nome Onde Morar.

Comecemos a leitura com o poema “Sesmarias”, um texto fundamentado em informações estatísticas, mundiais e brasileiras. Exemplo: “seis brasileiros concentram a mesma renda que 50% dos mais pobres”. Outro: “dez multinacionais têm mais capital que 180 países”. Como se vê, não temos aí nenhum verso aspirante à glória da metáfora mais sublime ou do lirismo capaz de enlevar os corações. Nada disso: é a realidade, nua e crua, batendo à porta.

A sequência de números hediondos também passa pelas diferenças entre países ricos e pobres, entre os salários de homens e mulheres, e desce aos preconceitos de nosso cotidiano ainda envenenado pelos quatro séculos de escravidão oficial: “O motorista do Dr. Mansur / é filho do motorista do pai do Dr. Mansur”.

E, por fim, vem aquela pergunta arrogante e anticidadã, que resume tudo: “você sabe com quem está falando?”. Uma pergunta que ainda ecoa a voz senhorial dos donos das antigas sesmarias, aquelas terras cedidas pelo rei de Portugal aos novos povoadores.

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O poema a seguir, “Coletiva”, mimetiza um comunicado formal de empresa (ou mesmo de autoridade pública) a respeito de algum ato violento cometido em área de sua responsabilidade. As fórmulas estão presentes em cada frase. Todo brasileiro já leu ou ouviu alguma delas. “lamentamos profundamente / o ocorrido. uma sindicância foi / aberta”.

Antes de ter à mão os livros de Diego Vinhas, conheci na internet o poema “Lei do Abate”, com o qual cheguei a fazer um “cartão poético” — cartazete ilustrado para o Facebook e o Instagram. O poema resume com precisão o pensamento agressivo e criminoso da extrema direita: fascista, machista, racista, armamentista, homofóbico: “tem que mirar na cara. / tem que matar”.

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Passemos ao último poema da seleção, o único extraído do livro Nenhum Nome Onde Morar. Composto apenas de perguntas feitas a uma mulher, é um texto diferente dos três anteriores. Aqui, o autor assume uma paleta mais lírica. “você reza? você já dançou sozinha / como se o mundo / se resumisse a paredes e velocidade, com / alguma rouca alegria?”.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Sabe com quem está falando?


• Diego Vinhas


              



Vilhelm Bjerke-Petersen - Night and day
Vilhelm Bjerke-Petersen, dinamarquês, Noite e dia


SESMARIAS

1% dos mais ricos do mundo detém a mesma
riqueza que o resto dos 99%.

seis brasileiros concentram a mesma renda
que 50% dos mais pobres.

nos EUA a média diária de consumo de água
per capita é de 575 litros enquanto na Etiópia
é de 15 litros.

dez multinacionais têm mais capital que 180 países.

mulheres recebem, em média, salários 30% menores
que os homens quando ocupam os mesmos cargos
e com a mesma formação.

O motorista do Dr. Mansur
é filho do motorista do pai do Dr. Mansur.

aquele zé-ninguém puxando conversa com a
madame. se o coronel manda apagar não dá nada.

advogados só podem despachar com magistrados
às 3as e 5as, das 14hs às 17hs (alguns
não atendem mesmo).

você sabe com quem está falando?



Vilhelm Bjerke-Petersen - Livscykeln
Vilhelm Bjerke-Petersen, Ciclo da vida (1943)


COLETIVA

lamentamos profundamente
o ocorrido. uma sindicância foi
aberta. uma força-tarefa criada.
estamos prestando toda a
assistência às famílias. as doações
ocorreram estritamente dentro
da legalidade. não há motivo
para pânico. precisamos esperar
o laudo da perícia. a população
deve fazer a sua parte. a culpa foi
de uma disputa entre facções.
a situação está sob controle. este
é o nosso compromisso com o
futuro, confiamos nas instituições.
a empresa repudia veementemente
todo e qualquer ato de violência. a
confiança já voltou ao mercado.
as apurações serão rigorosas e os
culpados punidos. não renunciarei.
repito: não renunciarei. trata-se
de um caso isolado. o meu cliente
está de consciência tranquila e
provará na justiça a sua inocência.
tem que manter isso aí, viu? esta
vitória é de cada um de vocês.



Vilhelm Bjerke-Petersen - O sonho da faca
Vilhelm Bjerke-Petersen, O sonho da faca


LEI DO ABATE

tem que ter lei.
tem que bater mesmo.
tem que parar com isso.
tem que se dar ao respeito.
tem que virar comida de peixe.
tem que levar pra casa se tem dó.
tem que defender quem é de família.
tem que insistir que no fundo ela quer.
tem que ver que com essa roupa tá pedindo.
tem que acabar com direito de vagabundo.
tem que deixar claro quem é que manda.
tem que trancar e jogar a chave fora.
tem que honrar a palavra de deus.
tem que dar o recado bem dado.
tem que enfiar a mão toda.
tem que mirar na cara.
tem que matar.



Vilhelm Bjerke-Petersen - Untitled
Vilhelm Bjerke-Petersen, Sem título


SAGITÁRIO

você traz de longe este talento para cair
de escadas? você mimetiza
cidades numa coleção de canecas de louça?
você sabia que Anna Akhmátova virou o nome
de uma (e da luz morta
que nos chega de uma) estrela? você foi
manhã de chuva em alguma vida passada?

você reza? você já dançou sozinha
como se o mundo
se resumisse a paredes e velocidade, com
alguma rouca alegria? você deixou
na infância uma noite de tédio, auréola
empenada e asas
de arame? você mentiria

para ter em estoque todos os sonhos
bons que pudesse coagir? você partilha
o quarto com um zoo imaginário? você detesta
cigarros? você teme que as crianças
se despedacem quando em seu colo? você
aceita ficar sempre por aqui?



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Carlos Machado, 2024



 Diego Vinhas
   • “Sagitário”
      in Nenhum Nome Onde Morar
      7Letras, Rio de Janeiro, 2014
   • Todos os demais poemas
      in Corvos Contra a Noite
      7Letras, Rio de Janeiro, 2019
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* Mário de Sá-Carneiro, "Quase", in Dispersão (1914)
______________
* Imagens: quadros do pintor dinamarquês Vilhelm Bjerke-Petersen (1909-1957)