Número 545 - Ano 23

Salvador, quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

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«O que esperais de um Deus? / Ele espera dos homens que O mantenham vivo.» (Hilda Hilst) *

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Marize Castro
Marize Castro


Amigas e amigos,

Após nossa tradicional pausa de verão, o poesia.​net está de volta. Nesta primeira edição do ano, tenho o prazer de receber, mais uma vez, a poeta potiguar Marize Castro. Desta vez, o que a traz a esta página são seus dois livros mais recentes: Jorro (2020) e Maroceano (2024), ambos publicados pela Una, de Natal.

Assim como já demonstrou em obras anteriores, Marize Castro, nesses dois novos títulos, exibe refinada aproximação com a Natureza e, ao mesmo tempo, forte solidariedade com os seres humanos, em especial as mulheres e outros setores sociais subtraídos de direitos e respeito, sejam minorias numéricas, sejam maiorias minorizadas.

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Passemos à leitura. Jorro é um livro magro, de apenas 64 páginas. Dedicado à memória de uma plêiade formada por grandes mulheres (a exemplo de Clarice Lispector, Emily Dickinson, Marielle Franco, Nísia Floresta e Virginia Woolf), a obra contém apenas um longo poema. Não há divisões nem títulos internos e, ademais, as páginas não são numeradas. Trata-se, portanto, de um texto único.

Para a minicoletânea ao lado, separei amostras que correspondem exatamente ao conteúdo de duas páginas. A primeira é “[De minha concha]”, que não é um título, mas as primeiras palavras do trecho.

O eu poético do poema sugere ser uma mulher ou um ser marinho completamente integrado à Natureza. “De minha concha ouço todos que chegam”, anuncia. De seu ponto de observação, ela aprecia o cortejo dos amantes e sabe também que existe um matadouro próximo, onde se entregam “novos e velhos corpos”.

Amante da Natureza, ela dirige uma espécie de mantra aos elementos: “toca-me, ar/ toca-me, água/ toca-me, fogo/ toca-me, tera/ toca-me, éter”. Vale notar que estas são exatamente as mesmas palavras que, páginas antes, abrem o poema.

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O segundo trecho escolhido de Jorro é “Retorno de meu repouso”, contido numa página mais próxima ao fim do poema. Aqui, o eu poético deixa bem claro seu lado social, posicionando-se ao lado dos indígenas, contra o escravismo e o estupro. Além disso, em irmandade com animais, vegetais e até os minerais, declara que é “hora de violar o inviolável / esbofetear a hipocrisia.”

E, entre parênteses, lá no fim, “(não desistir)”. Um detalhe: este último verso não está na mesma página de “[Retorno de meu repouso]”. Aparece, sozinho, na página seguinte.

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Passemos ao volume Maroceano. Também nesse livro os poemas não recebem títulos nas páginas, embora seja fácil perceber onde começa cada texto. No sumário, os títulos aparecem: são sempre a palavra (ou frase) que inicia o poema.

Agora, estamos em pleno mar. Não embarcados, mas em meio ao oceano ou, conforme o neologismo de Marize, o “maroceano”. A própria ilustração na capa do livro mostra uma mulher, no fundo do mar, cavalgando um peixe, rodeada por vários outros seres marinhos.

O primeiro poema da seleção de Maroceano é “[Observo-me]”. Após localizar-se “entre homens/ e mulheres-livros”, a pessoa que fala no poema se diz em busca de “um mundo justo”, “um mundo não desigual”. Sabe também que é preciso “aterrissar no feroz” como a última esperança.

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No poema “[É desamparo o que se vê]”, o eu poético se põe a observar mulheres jovens. E pergunta: “É desamparo o que se vê entre aquelas moças?”. A resposta, embora não seja declarada, é sim. Tanto que “a beleza esconde-se” e a morte chora. Quanto ao amor, resta uma indagação.

Vem a seguir o texto “[Aprendi com você]”. Você, neste caso, é a poeta Elizabeth Bishop, autora do conhecido e festejado poema “A arte de perder”. A poeta homenageante identifica-se com o ensinamento da homenageada: “Também sou viajante / — lições de geografia me comovem”. E conclui, de forma lírica e doída, que “o amor é o menino que se queima”.

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Chegamos, por fim a “[Está confirmado]”, o último poema da seleção, que é também o texto de encerramento do livro Maroceano. Nessa página, a poeta Marize Castro levanta-se e pronuncia em voz bem alto o seu gran finale. Belo e apoteótico.

O que está confirmado? Muitas coisas, grandes coisas. Entre elas estão, por exemplo, sonhos gigantescos: “a poeta desativará ogivas; / emergirá em brasas dos / confins do nada; incendiará hipócritas; (...) enfrentará o Senhor Guerra (...)”.

A poeta também empunhará o gládio da justiça para denunciar “a prisão de meninas/ africanas (...), escrevendo com o sangue de suas vaginas/ lamentos de intensa dor”. E mais: “não perdoará ditadores; / não perdoará genocidas;/ gritará em todas as tribunas:/ Gaza pertence a Gaza”.

Mas o amor e a poesia também se fazem presentes entre o que a poeta assevera que está confirmado. Ela “lerá mil vezes o fragmento 31 de Safo”. Para os mais curiosos, entre os textos poéticos deixados pela poeta grega Safo, esse fragmento é o mais famoso. Nele (leia-o aqui) Safo se rói de desejo e ciúmes porque um homem se aproxima de sua garota preferida.

Os últimos versos da “confirmação” de Marize Castro são metapoéticos. Discorrem sobre para quem e para quê a poesia. Mas o recado já está dado. Bravo, Marize.

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Formada em comunicação social pela UFRN, Marize Castro (Natal, 1962) trabalha com jornalismo cultural. É também editora de livros e produz as próprias obras, que saem pela Editora Una, de Natal.

Marize estreou em livro com o volume Marrons Crepons Marfins, em 1984. Depois, já publicou mais sete títulos: Rito (1993); Poço. Festim. Mosaico (1996); Esperado Ouro (2005); Lábios-Espelhos (2009); Habitar Teu Nome (2011); A Mesma Fome (2016); Jorro (2020); e Maroceano (2024).

A poeta Marize Castro já esteve aqui no boletim, antes, nas edições n. 391 e n. 365.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Segredos do “maroceano”


• Marize Castro


              



Sarah Sedwick - Three tangelos
Sarah Sedwick, pintora estadunidense, Três tangelos


[DE MINHA CONCHA]

De minha concha ouço todos que chegam
Seminua vejo os primeiros amantes
Os mais belos causam-me fulgor
Os menos belos, nostalgia
Não resisto aos mais vulneráveis
Suas mandíbulas de ouro fascinam-me:
triturem-me, peço-lhes

O dilúvio desses olhos aterroriza

No matadouro mais próximo, entregam-se
novos e velhos corpos
(entre línguas de felpa, o divino se mostra)



	  Então repito:

	  toca-me, ar
	  toca-me, água
	  toca-me, fogo
	  toca-me, terra
	  toca-me, éter



			  Eis o inevitável:
			  quedo-me

[RETORNO DO MEU REPOUSO]

Retorno do meu repouso na tristeza
e anuncio:

		hora de uivar
		abraçar o escorregadio
		e o viscoso
		acariciar prostitutas
		e prostitutos
		nutrir o feio
		e o belo

		Hora de violar o inviolável
		esbofetear a hipocrisia

		Não a nenhum assassinato de indígenas
		Não a nenhum tráfico escravista
		Não a nenhum estupro
		de mulher
		de homem
		de bicho
		de vegetal
		de pedra
		
		Hora de urrar
		proteger a mais preciosa
		e mais ordinária joia
	
	
					(não desistir)

		    De Jorro, 2020


Sarah Sedwick - The blue fish
Sarah Sedwick, O peixe azul


[OBSERVO-ME]

Observo-me entre homens
                   e mulheres-livros

— nossos segredos não se quebraram
                   com as ondas

Um mundo justo, senhores
Um mundo não desigual, senhoras

Anjos no centro do mundo acasalam-se
— após cada gozo, choram e dormem

Não esqueço: a aterrissagem no feroz
			é a última esperança

Neste santuário — em segredo —
finco meu estandarte
De constelação em constelação
recuso-me ao banal
— para dizer o originário
esta escritura
renasce

[É DESAMPARO O QUE SE VÊ]

É desamparo o que se vê entre aquelas moças?
É a inocência o que vem dos olhos
de cada uma delas?

A beleza — esquiva — esconde-se
A morte detém-se diminuta
e chora

O amor será sempre este golpe de sombra e luz
que nos convida a dançar entre estrelas,
confissões e navalhas?

		    De Maroceano, 2024


Sarah Sedwick - Pretty in pink
Sarah Sedwick, Beleza cor-de-rosa


[APRENDI COM VOCÊ]

Aprendi com você a perder
Perca algo a cada dia, você me disse

Desde então mergulho em águas escuras
Arranco pedras, cedros, paraísos

Também sou viajante
— lições de geografia me comovem

Reencontro lâminas e caudas de arminhos
do outro lado do mundo

Herdei as vestes da noite
e permaneço sinuosa

Solar

Você, em sua serra secreta, revela-me:
o amor é o menino que se queima

No meu ninho de água, entre sargaços e rochas,
oculto senhas e quase sinto sua falta
        [com o pensamento em Elizabeth Bishop]

[ESTÁ CONFIRMADO]

Está confirmado:
	a poeta desativará ogivas;
	não perderá corrida para estranhos
	ao alvorecer; emergirá em brasas dos
	confins do nada; incendiará hipócritas;
	mesmo amarrada, irá se atirar ao mar;
	mesmo com cera nos ouvidos, ouvirá;
	boicotará mulheres e homens que não
	choram; denunciará a prisão de meninas
	africanas, em cavernas de paredes escuras,
	escrevendo com o sangue de suas vaginas
	lamentos de intensa dor;
	enfrentará o senhor Guerra,
	de olhos azuis, de pele muito clara
	e alma pútrida;
	não perdoará ditadores;
	não perdoará genocidas;
	gritará em todas as tribunas:
	Gaza pertence a Gaza;
	subirá as cortinas;
	manterá as janelas abertas;
	recolherá relíquias;
	permanecerá indomada, úmida, mutável;
	adentrará florestas;
	lerá mil vezes o fragmento 31 de Safo;
	deslizará em hexâmetros;
	festejará sozinha;
	cairá na outra margem;
	surpreenderá a si mesma.

Está confirmado:
	a poeta concorda com a outra poeta
	— nem para milhões,
	nem para uma única pessoa,
	nem para si mesma,
	escreve-se para a própria obra.

		    De Maroceano, 2024



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Carlos Machado, 2025



 Marize Castro
   • “[De minha concha]” e “[Retorno do meu repouso]”
      in Jorro
      Una, Natal, 2020
   • “[Observo-me]”, “[É desamparo o que se vê]”,
      “[Aprendi com você]” e “[Está confirmado]”
      in Maroceano
      Posfácio de Moama Marques
      Una, Natal, 2024
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* Hilda Hilst, "Passeio", in Exercícios (2002)
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* Imagens: quadros da pintora estadunidense Sarah Sedwick (1979-)