Número 551 - Ano 23

Salvador, quarta-feira, 21 de maio de 2025

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«Não sei de pássaros, / não conheço a história do fogo. / Mas creio que minha solidão deveria ter asas.» (Alejandra Pizarnik) *

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Maíra Dal’Maz
Maíra Dal’Maz


Amigas e amigos,

Nesta edição, o poesia.​net apresenta a poeta paraense Maíra Dal’Maz, que lançou recentemente o livro Vira uma pedra o tempo (Patuá, 2024). A autora também já publicou as coletâneas Ex-voto (Urutau, 2022) e Agouro (Escaleras, 2021). Nascida em Monte Dourado (distrito de Almeirim, norte do Pará), Maíra vive em Natal, Rio Grande do Norte. É doutoranda em Literatura Comparada e mestra em Educação pela UFRN.

Tenho aqui em mãos o livro mais recente da autora, Vira uma pedra o tempo. Antes mesmo de abri-lo, presto atenção para a ambiguidade do título. O tempo se transforma numa pedra ou apenas a faz mover-se ou girar? Mas passemos à leitura.

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Os poemas são divididos em dois blocos, intimamente associados ao título: “Tempo” e “Pedra”. Não à toa, no texto de abertura do primeiro bloco, chamado “Entrada”, a poeta traz à baila a dúvida que expus acima: “peço que me ajude a escolher a ordem / 1. vira o tempo uma pedra / 2. vira uma pedra o tempo”. Mais adiante, ela conclui: “dá na mesma / vira o tempo uma pedra / vira uma pedra o tempo” e ainda acrescenta: “ou onde soluça o silêncio”, que foi a primeira ideia para nomear o livro. Portanto, pelo menos até aqui, minha dúvida inicial permanece.

Mas prossigamos. Vamos para os poemas selecionados, transcritos ao lado. Leiamos “Escrever é Brincar com Ruínas”. Aqui, o eu poético revisita o passado familiar. “minha mãe foi / mãe de suas irmãs / vendedora de flores de pano / caixa de banco / camareira e garçonete”. Tudo muito trivial, cotidiano.

A retomada da história familiar continua no poema “Heranças”. Agora, a personagem em observação é a avó. E a neta revela aquelas coisas inexplicáveis das lembranças pessoais: as memórias guardadas no mais fundo de nossa capacidade sensorial. No caso, os cheiros da casa da avó, os perfumes da própria avó. E isso, apesar de a neta confessar que só via a parenta mais velha “a cada dois anos e não sabia bem o que falar / diante dela”.

•o•

Os poemas seguintes já pertencem ao capítulo “Pedra”, embora o contexto ainda seja familiar. No poema “Preguiçosa”, retorna a mãe, em tempos atuais. Contudo, a referência continua sendo o passado, quando a mãe costumava dizer: “ela ainda não lava as panelas / a minha pequenininha preguiçosa”.

Em “Barragem”, o lugar é outro. Não se sabe bem quem é o sujeito poético, nem também o “você” no texto. Sabe-se apenas que o momento é sério. O narrador arrepende-se da palavra que não disse. “uma só palavra: aquela / que eu não disse, aquela que insiste / em conter a morte”.

•o•

No poema “Lithium”, a narradora se imagina deitada “no meio do canavial / vendo as estrelas”, para “chorar do lítio / todo o sal”. Aparentemente, o poema sugere que a ato de contemplar as estrelas entre as flores da cana-de-açúcar facilitaria limpar do corpo o sal de lítio, medicamento usado para combater a depressão.

Vem, por fim, o poema “Solstício de verão”. Aqui, a pessoa que fala imagina que hoje é “o dia mais longo do ano / e que nele estou ajoelhada”. A partir daí, a poeta introduz no contexto um inseto, uma “vespa-do-figo / que vivem somente um dia”. E essa flutuação de pensamentos evolui para uma pergunta: “qual é / exatamente / a minha função no organismo de Gaia”? Mais uma bela indagação sem resposta.

E o tempo? Transforma-se em uma pedra ou faz uma pedra se mover? A poeta tem razão: “dá na mesma”.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado



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SEMANA DONIZETE GALVÃO

Uma notícia que merece toda a atenção de quem gosta de poesia. Os leitores dste boletim conhecem bem a obra do poeta mineiro Donizete Galvão (1955-2014).

A prefeita Tatiana Pires Pereira Cobra, de Borda da Mata, terra natal do poeta Galvão, sancionou no dia 15 de maio uma lei que cria o Dia Municipal do Livro e a Semana Municipal de Leitura "Donizete Galvão". O Dia Municipal é 24 de agosto, aniversário do poeta, e a Semana ocorrerá anualmente em torno dessa data. A Semana incluirá a realização de uma feira do livro, concursos literários, palestras e debates com escritores.

Parabéns a Borda da Mata pela iniciativa. Viva o poeta Donizete Galvão! E viva a Poesia!

Donizete Galvão foi destacado várias vezes aqui no poesia.net:
n. 516;   • n. 425;   • n. 400;         • n. 302;   • n. 236;   • n. 19.

•o•

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O tempo vira pedra


• Maíra Dal’Maz


              



Slava Fokk - Girl in blue-2020
Slava Fokk, pintor russo, Moça de azul (2020)


ESCREVER É BRINCAR COM RUÍNAS

2

minha mãe foi
mãe de suas irmãs
vendedora de flores de pano
caixa de banco
camareira e garçonete

viu cantar no hotel brasil
agnaldo timóteo e moacyr franco

era sonâmbula
seu sonho nessa época
era cobrir a lua
com um lençol

até hoje ela gosta da lua
tira fotos e reclama que não fica
tão bonita

qual o sonho dela hoje?
ser reintegrada à universidade
tomar vinho na piscina sob a luz
da lua
nós ao redor
inclusive os cachorros

HERANÇAS

o cheiro da minha vó
em talco, hidratante nívea, minancora
batom da avon, perfume natura

quando morreu, foi um pouco para cada filha
o cheiro e as roupas
uma dezena delas que até chegou
às netas, mesmo eu — que só a via
a cada dois anos e não sabia bem o que falar
diante dela

minha forma de mostrar deferência
era comer a salada de acelga até o final
esperava que todos terminassem
esperava que ela reparasse

dia desses, levei para lavar roupas
na casa da mãe, que reconheceu
as roupas da vó
levou ao rosto e eu sabia
que ali ela também sentia
aquele cheiro que hoje à noite
vestindo minhas próprias roupas
eu sinto. 


Slava Fokk - Lotus-2018
Slava Fokk, Lótus (2018)


PREGUIÇOSA

minha mãe — a sexta filha nascida e vingada
    certamente a mais bonita de todas
saiu cedo de casa para trabalhar
talvez por isso suas atribuições domésticas
não fossem tantas depois de nós
da infância não se lembra muito
    trauma luto complexo pobreza
    são engenhosos a apagar memórias

ela ainda não gosta de limpar a casa
    nem eu
ao cozinhar acha sempre insosso e sem graça

minha mãe nos criou para estudar e trabalhar
    é isso o que fazemos de melhor
então sempre houve briga em questão de louça
sem acordo ou gentilezas
nunca lavamos a louça inteira, eu e minha irmã
    as panelas ficavam para minha mãe

fico tentada em deixar as panelas até hoje para ela lavar
não lavo todas, sempre deixo uma
para que ela comente
    ela ainda não lava as panelas
    a minha pequenininha preguiçosa

BARRAGEM

se arrependimento matasse
não precisaria me explicar
nunca mais. essa queimadura
o buraco na sua blusa
nunca mais o barulho que faz
a minha língua seca ao lembrar
e o choque de lembrar de tudo
o que você me disse
mesmo sendo uma só palavra
uma só palavra: aquela
que eu não disse, aquela que insiste
em conter a morte.


Slava Fokk - Flamingo-2017
Slava Fokk, Flamingo (2017)


LITHIUM

na envergadura de um pé de cana
uma pessoa observa
depois da chuva, as flores são brancas
isso é uma espécie de ilusão
por causa do contraste do verde com o resto
aquele verde que Belchior chorou
mas não era Belchior ali
naquele sonho, era noite
eu estava deitada também
no meio do canavial
vendo as estrelas
desde então, se vejo as flores brancas
da cana-de-açúcar
quero me deitar entre elas
esperar anoitecer
enfim chorar do lítio
todo o sal.

SOLSTÍCIO DE VERÃO

digamos que hoje é mesmo
o dia mais longo do ano
e que nele estou ajoelhada

é também o dia mais longo
da vida da vespa-do-figo
que vive somente um dia

o único objetivo dela
é entrar em um minúsculo jardim
despejar seus ovos e ali morrer

não é ironia para uma vespa
nascer e morrer
no dia mais longo do ano

ironia é eu nunca ter comido um figo
nem ter despejado ovos
nem ter morrido

digamos que eu queira saber qual é
exatamente
a minha função no organismo de Gaia

saberia dizer?




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Carlos Machado, 2025


 Maíra Dal’Maz
      in Vira uma pedra o tempo
      Patuá, São Paulo, 2024
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* Alejandra Pizarnik, “La Carencia”, in Poesia Completa, (Lumen, 2001)
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* Imagens: quadros do pintor russo Slava Fokk (1976-)