Amigas e amigos,
Esta é a segunda incursão do poeta Marcílio Godoi aqui no poesia.net. Mineiro de Araguari, ele esteve aqui
há três anos (edição n. 486), trazido
por seu livro de estreia na poesia, Estados Úmidos da Matéria (Patuá, 2016). Retorna agora
com poemas de sua recém-lançada coletânea Chamada, publicada pela Editora Ramalhete, de Belo Horizonte.
Chamada é um volume no qual Godoi mergulha fundo em suas memórias pessoas. Nos poemas deste livro, o autor desfia
lembranças de infância e relatos familiares e também descreve modos de ser dos viventes de sua época no sudeste de Minas,
quase na fronteira com Goiás. Para este boletim selecionei oito poemas do livro. Vamos à leitura.
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O primeiro poema da seleção é “Baile da Saudade”. De modo irônico e, ao mesmo tempo, emocionado, o poeta traça um retrato
de suas lembranças. “As memórias dançam, bêbadas, / falam alto, trocam datas / no secreto escuro limbo / de nossos desejos,
/ os mais inconfessáveis”. Logo em seguida, ele admite que não passamos isentos pelos caminhos do passado: “Mudam-nos
de lugar, as memórias”.
O poema seguinte provém de recordações familiares, centradas no nome de um tecido: “Organza”. A mãe costurava,
e essa palavra surgia com frequência entre as conversas de costura. O menino Marcílio não sabia do que se tratava.
Nem eu, até agora. Consulto o Houaiss: trata-se de “fazenda fina geralmente de fio de seda”. Na atualidade,
acrescenta o dicionário, a organza já é produzida com fios sintéticos.
Mas o menino não sabia o que era organza. E hoje, o homem maduro, ouvindo a palavra numa loja, embarca numa viagem
no tempo: “veio vindo a voz da mãe / palavra com laço leve / ecoada em modo sonho / como um presente”.
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No poema “Brevidade”, a memória se volta para as delícias do “biscoitinho de queijo da tia Almeranda”, acepipe tão
maravilhoso que até inspira orações profanas: “Ave, manteiga, cheia de nata”.
Em “Três Ruminações sobre a Ausência”, o poeta, envolto em recordações, medita sobre o significado do tempo.
E conclui, melancólico: “O tempo é um paninho jeitoso / de crochê todo feito à mão / no centro daquela mesa imensa /
que não existe mais”.
A seguir, uma personagem do interior, “Maria Imaculada”, fala em primeira pessoa. Ela se enfeita toda para
exibir-se na praça da cidadezinha: “Pus pulseira de berloque / saia de tirar retrato / no espelho fiz um coque /
inda engraxei os sapatos”. Mas coitada de Maria Imaculada: são só desejos reprimidos. Afinal, a começar pelo nome,
ela é uma moça sem mácula, não pode sucumbir a esses desejos menores de exibição, de vaidades, de pecados.
O poema “Miranda” traça um painel de costumes interioranos de época. “Baixa a cabeça no prato e come, menino!”.
E lá ia o pequeno, sempre admoestado por pai, mãe, tia, professora — e até pelos meninos mais velhos.
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Discorrer sobre o tempo é perigoso. Trata-se de um exercício que fatalmente leva a reflexões a respeito de nossa
finitude. Isso também ocorre na sequência dos textos memoriais de Marcílio Godoi. No poema “Lethe”, o autor
observa: “No rio do esquecimento / não se mergulha de uma só vez. // Primeiro é preciso ficar à margem /
e sentir espirrarem na gente uns lapsos / uns vazios, uns brancos desmemoriados”.
Em “Família Vende Tudo”, o último poema de nossa miniantologia, um momento de desagregação da vida. Os filhos
já se mudaram para outras cidades, onde supostamente há mais chances de sobrevivência. Os parentes mais velhos
já morreram. Então, chega uma hora na qual os que restam decidem vender a casa, cheia de lembranças e fantasmas,
e também repleta das coisas materiais listadas no poema.
De modo sub-reptício, entre objetos triviais — como mesas, peças de louça, cômodas e a máquina
Singer —, o poeta contrabandeia bens abstratos que vagueiam pela casa, como “esse cheiro de morte encardido”,
“essa dor que me dói desde a cozinha” e “dois lindos sonhos desfeitos em flor”.
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Natural de Araguari-MG, Marcílio Godoi, 62 anos, é doutor em Literatura Brasileira pela USP e mestre em
Crítica Literária e Literatura Brasileira pela PUC-SP. É também jornalista, pela Faculdade Cásper Líbero, de
São Paulo, e arquiteto pela UFMG. Chamada (2025) e Estados Úmidos da Matéria (2016) são seus
dois únicos livros de poesia. Mas Godoi é também autor de volumes de contos, romances e títulos infanto-juvenis,
com os quais já conquistou láureas, como o Prêmios Candango 2022 para o romance Etelvina (Patuá, 2021).
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
CORREÇÕES
No boletim anterior, n. 552, que destaca
a poeta Mar Becker, cometi dois erros.
1. No poema "[Aproxima-te do amor]", os quatro últimos versos devem ser: "com medo de que / se chamado, o amor / (esse pássaro) / se assuste".
2. No rodapé de crédito, o livro de Mar Becker, correto, é: Noite Devorada, Círculo de Poemas, São Paulo, 2025.
As correções já foram feitas na cópia do boletim que fica no site Alguma Poesia. Portanto, os erros só valem para quem recebeu
o boletim por e-mail.
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