Número 553 - Ano 23

Salvador, quarta-feira, 18 de junho de 2025

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«Um homem é um homem, no que não vê e no que consome.» (João Guimarães Rosa) *

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Marcílio Godoi
Marcílio Godoi


Amigas e amigos,

Esta é a segunda incursão do poeta Marcílio Godoi aqui no poesia​.net. Mineiro de Araguari, ele esteve aqui há três anos (edição n. 486), trazido por seu livro de estreia na poesia, Estados Úmidos da Matéria (Patuá, 2016). Retorna agora com poemas de sua recém-lançada coletânea Chamada, publicada pela Editora Ramalhete, de Belo Horizonte.

Chamada é um volume no qual Godoi mergulha fundo em suas memórias pessoas. Nos poemas deste livro, o autor desfia lembranças de infância e relatos familiares e também descreve modos de ser dos viventes de sua época no sudeste de Minas, quase na fronteira com Goiás. Para este boletim selecionei oito poemas do livro. Vamos à leitura.

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O primeiro poema da seleção é “Baile da Saudade”. De modo irônico e, ao mesmo tempo, emocionado, o poeta traça um retrato de suas lembranças. “As memórias dançam, bêbadas, / falam alto, trocam datas / no secreto escuro limbo / de nossos desejos, / os mais inconfessáveis”. Logo em seguida, ele admite que não passamos isentos pelos caminhos do passado: “Mudam-nos de lugar, as memórias”.

O poema seguinte provém de recordações familiares, centradas no nome de um tecido: “Organza”. A mãe costurava, e essa palavra surgia com frequência entre as conversas de costura. O menino Marcílio não sabia do que se tratava. Nem eu, até agora. Consulto o Houaiss: trata-se de “fazenda fina geralmente de fio de seda”. Na atualidade, acrescenta o dicionário, a organza já é produzida com fios sintéticos.

Mas o menino não sabia o que era organza. E hoje, o homem maduro, ouvindo a palavra numa loja, embarca numa viagem no tempo: “veio vindo a voz da mãe / palavra com laço leve / ecoada em modo sonho / como um presente”.

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No poema “Brevidade”, a memória se volta para as delícias do “biscoitinho de queijo da tia Almeranda”, acepipe tão maravilhoso que até inspira orações profanas: “Ave, manteiga, cheia de nata”.

Em “Três Ruminações sobre a Ausência”, o poeta, envolto em recordações, medita sobre o significado do tempo. E conclui, melancólico: “O tempo é um paninho jeitoso / de crochê todo feito à mão / no centro daquela mesa imensa / que não existe mais”.

A seguir, uma personagem do interior, “Maria Imaculada”, fala em primeira pessoa. Ela se enfeita toda para exibir-se na praça da cidadezinha: “Pus pulseira de berloque / saia de tirar retrato / no espelho fiz um coque / inda engraxei os sapatos”. Mas coitada de Maria Imaculada: são só desejos reprimidos. Afinal, a começar pelo nome, ela é uma moça sem mácula, não pode sucumbir a esses desejos menores de exibição, de vaidades, de pecados.

O poema “Miranda” traça um painel de costumes interioranos de época. “Baixa a cabeça no prato e come, menino!”. E lá ia o pequeno, sempre admoestado por pai, mãe, tia, professora — e até pelos meninos mais velhos.

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Discorrer sobre o tempo é perigoso. Trata-se de um exercício que fatalmente leva a reflexões a respeito de nossa finitude. Isso também ocorre na sequência dos textos memoriais de Marcílio Godoi. No poema “Lethe”, o autor observa: “No rio do esquecimento / não se mergulha de uma só vez. // Primeiro é preciso ficar à margem / e sentir espirrarem na gente uns lapsos / uns vazios, uns brancos desmemoriados”.

Em “Família Vende Tudo”, o último poema de nossa miniantologia, um momento de desagregação da vida. Os filhos já se mudaram para outras cidades, onde supostamente há mais chances de sobrevivência. Os parentes mais velhos já morreram. Então, chega uma hora na qual os que restam decidem vender a casa, cheia de lembranças e fantasmas, e também repleta das coisas materiais listadas no poema.

De modo sub-reptício, entre objetos triviais — como mesas, peças de louça, cômodas e a máquina Singer —, o poeta contrabandeia bens abstratos que vagueiam pela casa, como “esse cheiro de morte encardido”, “essa dor que me dói desde a cozinha” e “dois lindos sonhos desfeitos em flor”.

•o•

Natural de Araguari-MG, Marcílio Godoi, 62 anos, é doutor em Literatura Brasileira pela USP e mestre em Crítica Literária e Literatura Brasileira pela PUC-SP. É também jornalista, pela Faculdade Cásper Líbero, de São Paulo, e arquiteto pela UFMG. Chamada (2025) e Estados Úmidos da Matéria (2016) são seus dois únicos livros de poesia. Mas Godoi é também autor de volumes de contos, romances e títulos infanto-juvenis, com os quais já conquistou láureas, como o Prêmios Candango 2022 para o romance Etelvina (Patuá, 2021).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado



CORREÇÕES

No boletim anterior, n. 552, que destaca a poeta Mar Becker, cometi dois erros. 1. No poema "[Aproxima-te do amor]", os quatro últimos versos devem ser: "com medo de que / se chamado, o amor / (esse pássaro) / se assuste". 2. No rodapé de crédito, o livro de Mar Becker, correto, é: Noite Devorada, Círculo de Poemas, São Paulo, 2025. As correções já foram feitas na cópia do boletim que fica no site Alguma Poesia. Portanto, os erros só valem para quem recebeu o boletim por e-mail.


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Viagem ao país da memória


• Marcílio Godoi


              



George Telfer Bear -Seated woman
George Telfer Bear, pintor escocês, Mulher sentada


BAILE DA SAUDADE

As memórias dançam, bêbadas,
falam alto, trocam datas
no secreto escuro limbo
de nossos desejos,
os mais inconfessáveis.

    Mudam-nos de lugar, as memórias.

As memórias se abraçam,
interpretam papéis, rodam à baila
confundem fatos, nomes
inventam outros, inexistentes riem
para dar sentido à trama
mesmo que infame, sempre alegre

    de nossas trajetórias pessoais.

Quando uma delas se fixa
congelada num canto
paralisada, olhando o nada
não mexa, não toque
não vá despertá-la agora:

    ela pode acabar com a festa.

ORGANZA

	Para a Melinha

De minha mãe, costureira
costumava ouvir às vezes
solta na fala alinhavada dela
a palavra “organza”.

Dizia com delicadeza e a voz
ecoada em modo sonho vinha
como se organza fosse um presente
dos deuses a prediletas ninfas.

Eu não fazia ideia do que fosse aquilo
imaginava fios de ouro, organza, flor
botões forrados, desenhos
de bordados sutis
sobre redondos bastidores.

Organza na tarde mulher
canto de irmã, drapeado, pesponto
viés, overloque, seda
cambraia, musselina, chiffon
laise, tafetá, organdi, o som
na curvatura do espaço pano
no dicionário da modesta modista
que era minha mãe.

Hoje na loja ouvi a moça falar organza
à vendedora e mostrar-lhe uma fita
do tal tecido transparente
diáfano, levemente colorido.

Organza então era isso?, pensei.
E repeti: organza, organza. Organza.
Na última vez, veio vindo a voz da mãe
palavra com laço leve
ecoada em modo sonho
como um presente.


George Telfer Bear -Figures in a landscape-1940
George Telfer Bear, Figuras numa paisagem (1940)


BREVIDADE

O biscoitinho de queijo da tia Almeranda
a gente come igual hóstia:
de olhos fechados, os pecados
aguados em louvor nos cantos
lavados dissolvem-se, solenemente.

    E em glória ao que se dissipa na língua
    anjos leitosos resplandecem no céu da boca
    como na fala imóvel das madalenas.

Os sequilhos da tia Almeranda
Espocam trombetas de notas brancas
e profanam silenciosa oração:

    Ave, manteiga, cheia de nata.

TRÊS RUMINAÇÕES SOBRE A AUSÊNCIA

O tempo é um torvelinho
botando branco lunar
nos cabelos e na mobília.
Lava-nos os cabelos
leva-nos a mobília.

    O tempo é um cinzeiro bonito
    na casa de quem não fuma.
    É uma espera naufragada e cinza
    numa ilha distante
    a gente sem saber se o branco
    da ilha é de nuvem
    silêncio ou gesso.

O tempo é um paninho jeitoso
de crochê todo feito à mão
no centro daquela mesa imensa
que não existe mais.


George Telfer Bear -La jeunesse
George Telfer Bear, La jeunesse (1940)


MARIA IMACULADA

Pus pulseira de berloque
saia de tirar retrato
no espelho fiz um coque
inda engraxei os sapatos.

    Botei broche na lapela
    água de flor no cangote
    lavei as mãos na gamela
    e caprichei no decote.

Cruzei a praça sorrindo
como quem não passeasse
como não fosse domingo

    como se eu não me lembrasse
    que o meu nome é Imaculada
    e eu ainda estou deitada.

MIRANDA

Baixa a cabeça no prato e come, menino!,
dizia a mãe, quando a gente se metia
a dar opinião, fazer bico, fazer queixa
disso ou daquilo.
Botar as manguinhas de fora.

    Menino não tem querer!, o pai confirmava,
    categórico. Trabalho de criança é pouco,
    mas quem rejeita é louco!, decretava o tio.

Vontade dá e passa, consolava a avó.
E o avô completava, num muxoxo:
o que não tem remédio, remediado está.

    Depois era a professora quem batia
    sua régua moral sobre a fórmica da mesa,
    menino, quieta esse facho,
    ou vai pra diretoria.

E havia ainda a boa, mas sempre apressada tia
que tinha lá também
as suas desanimadoras sentenças:
tira a mão do pinto, peste!
na volta a gente compra.

    Os meninos mais velhos também descontavam
    em nós, com um coque na testa:
    Gente baixinha só serve pra levar recado
    e coçar barriga de cavalo!

Depois dizem que a infância
é a melhor época de nossa vida.

    A memória tem lá os seus disfarces.
    Você tem o direito inalienável
    de permanecer em silêncio
    e tentar sobreviver ao passado.

Tudo o que se lembrar
Poderá ser usado contra você
no tribunal do tempo.


George Telfer Bear -The pink frock
George Telfer Bear, O vestido cor de rosa


LETHE

No rio do esquecimento
não se mergulha de uma só vez.

    Primeiro é preciso ficar à margem
    e sentir espirrarem na gente uns lapsos
    uns vazios, uns brancos desmemoriados.

Então, um dia, não se sabe bem quando,
molhamos as mãos do remorso
umedecemos os cabelos do perdão
talvez, por um tempo, dobramos a barra da calça
e mergulhamos n’água os pés da saudade
curvando-nos sobre a lâmina líquida
para lavar o rosto do desencanto.

    Só depois bebemos, como dizia Virgílio,
    “junto à onda do leteio rio,
    as incúrias águas e o longo oblívio”.

Aí, sim, o esquecimento absoluto
oculta-nos, despercebidos do todo, de tudo.

    Submersos, partimos deste mundo
    limpos, perecíveis
    em paz.

FAMÍLIA VENDE TUDO

Mesa de canto
peça de louça
com seu par perdido
e esse cheiro de morte encardido.

    Jogo de xícara
    livro de horas
    caixa de guardado
    aquele fogo de palha apagado.

Máquina Singer
cômoda antiga
banco de palhinha
essa dor que me dói desde a cozinha.

    Garfo de prata
    taça de cobre
    colcha cobre leito
    um grande vaso de vidro no peito.

Cama de armar
meias tigelas
seis cartas de amor
dois lindos sonhos desfeitos em flor.

    Flores de plástico
    máquina Remington
    taco de parquete
    saudade, no cheiro do sabonete.

Porta-carimbo
mata-borrão
e todas as coisas
aos novos donos, no mesmo abandono.




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Carlos Machado, 2025


 Marcílio Godoi
      in Chamada
      Ramalhete, Belo Horizonte, 2025
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* João Guimarães Rosa, in Grande Sertão: Veredas
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* Imagens: quadros do pintor escocnês George Telfer Bear (1876-1973)