Número 554 - Ano 23

Salvador, quarta-feira, 2 de julho de 2025

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«Não sei de pássaros / não conheço a história do fogo.» (Alejandra Pizarnik) *

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nove poetas
Angélica Freitas, Miguel Sanches Neto, Marcos Siscar, Paula Glenadel, Ivan Junqueira, José Paulo Paes, Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Dante Milano


Amigas e amigos,

Para quem gosta de poesia, um dos lançamentos mais importantes deste ano ficará sendo, sem dúvida, a Antologia do Poema em Prosa no Brasil, organizada pelo poeta e ensaísta Fernando Paixão e publicada pela Ateliê Editorial em parceria com a Editora Unicamp.

Além de pinçar a extensa seleção de textos, que abrange poetas desde o século XIX até os dias atuais (a antologia tem 376 páginas), Fernando Paixão oferece ao leitor um substancial estudo sobre o poema em prosa no Brasil. Cronologicamente, o primeiro exemplo localizado é um libelo contra a escravidão e veio da pena de Gonçalves Dias, publicado em 1850. Mas o poema em prosa só entraria de fato na literatura brasileira, pelas mãos dos simbolistas, a partir da década de 1890.

A disposição dos poemas na antologia obedece à data de nascimento dos autores. Vêm primeiro poetas-prosadores mais recentes e, lá no fim, o pessoal do século XIX. Fernando Paixão chama a atenção para as dificuldades legais de sua empreitada. Em muitos casos, não foi possível obter a autorização para reproduzir os poemas. Assim, nomes como Manuel Bandeira ficaram fora da antologia.

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Para este boletim, selecionei nove poemas de nove autores, cujas minibiografias estão listadas mais abaixo, nesta coluna. Tive o cuidado de escolher textos mais curtos e também mais próximos do leitor comum. Desse modo, deixei de lado os poemas mais antigos, que em certos casos se estendem até por mais de duas páginas. Também fugi dos poemas de clima puramente abstrato. [Detalhe: por que nove poetas? O número nove (três ao quadrado), assim como quatro e dezesseis, facilita a montagem da foto dos autores, acima.]

Avancemos para a leitura. “Eu durmo comigo”, o primeiro poema ao lado, tem a assinatura da gaúcha Angélica Freitas (1973-). Curiosamente, a autora de certo modo quebra o padrão de prosa, ao incluir no texto barras separadoras como aquelas utilizadas para citar trechos de poemas, indicando as quebras de versos: “eu durmo comigo / deitada de bruços eu durmo comigo / virada pra direita eu durmo comigo / eu durmo comigo abraçada comigo” (...)

Vem a seguir o poema “No país de José Paulo Paes”, no qual o paranaense Miguel Sanches Neto (1965-) descreve uma visita à casa do poeta José Paulo Paes, em São Paulo. “A conversa nunca era exaltada, nem havia farpas vibrando no ar. Com sua voz franca, o poeta iluminava a tarde”, escreve Sanches.

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Em “Jardim de vestígios”, do poeta paulista Marcos Siscar (1964-), o texto compõe-se de frases curtas e diretas, descrevendo cenas. Exemplo: “O dono do boteco. A roupa de um verde vivo. As mãos da menina enquanto dança. Um carro mal estacionado. O funcionário que olha desconfiado. Um desconhecido andando à frente. Folhetos no lixo. Um barulho de tiro. A briga depois da esquina”.

O próximo texto é “A doadora”, da poeta carioca Paula Glenadel (1964-). Trata-se de um relato em tom de pequena crônica, sobre uma mulher, dona de bar, que planeja doar um de seus rins ao marido. “A dona do bar doa porque senão ele morre e isso ela não pode suportar”, raciocina a poeta.

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O clima de relato urbano continua no texto “Crônica”, do poeta e tradutor carioca Ivan Junqueira (1934-2014). Mas aqui o tom é de tragédia. “Quando o corpo da criança deu à praia, o céu começou a chorar estrelas e a lua se vestiu de preto”. O fato causou alvoroço e, contraditoriamente, o texto se fecha com a frase “O bairro do Leblon viveu um dia de festa”. Isso me traz à mente a letra do samba “De frente pro crime” (João Bosco/Aldir Blanc), na qual uma tragédia também dá lugar a festa.

Segue-se o poema “Do Novíssimo Testamento”, do paulista José Paulo Paes (1926-1998). Com linguagem tipicamente bíblica, o poeta descreve as torturas aplicadas sobre alguém que, a princípio, parece tratar-se de Cristo: “e depois de o haverem escarnecido tiraram-lhe a capa vestiram-lhe os seus vestidos e o levaram a crucificar”. Contudo, o último parágrafo desfaz a ideia inicial. Em vez de uma autoridade romana, quem se pronuncia sobre o caso é “o secretário de segurança”. Logo, não se trata do Cristo, mas de um cidadão comum maltratado nas ruas, possivelmente pela polícia.

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Vem agora o “O apanhador de poemas”, do gaúcho Mario Quintana (1906-1994). Com muita graça, Quintana diz o que é preciso fazer para “apanhar um poema”, como se estivesse falando de colher um fruto ou capturar um animal. “Um poema não se pega a tiro. Nem a laço. Nem a grito”. Mais adiante, ele ensina: “É preciso esperá-lo com assonâncias e aliterações, para que ele cante”.

Assim como Quintana, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), seu colega de geração, também comparece com um texto divertido. Em “Declaração de amor”, Drummond esbanja na criação de palavras, partindo dos nomes de espécies florais. No início, ele atribui à amada nomes de flores normais: “Minha prímula meu pelargônio meu gladíolo meu botão-de-ouro”. Depois, ele solta as amarras e parte para: “Daliabegônia minha. Forsitiaíris tuliparrosa minhas”. E, como é Drummond, termina chamando a amada de “Meu cravo-pessoal-de-defunto. Minha corola sem cor e nome no chão de minha morte”.

A última amostra, ao lado, da Antologia do Poema em Prosa no Brasil é o poema “Sentado numa pedra”, do carioca Dante Milano (1899-1991). Temos aí um texto curto, marcado por infinito desânimo. Uma reflexão áspera como o granito. “Um céu longínquo, indiferente, inumano. E a terra com a sua dureza”.

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OS POETAS

• Angélica Freitas (Pelotas-RS, 1973) - Poeta e tradutora, estreou em 2007 com a coletânea Rilke Shake. Lançou em seguida Um Útero É do Tamanho de Um Punho (2012). Foi coeditora da revista Modo de Usar & Cia..

• Miguel Sanches Neto (Bela Vista do Paraíso-PR, 1965) - Escritor, professor e crítico literário. Publicou contos, romances e poesia. Reuniu seus poemas esparsos, escritos entre 1985 e 2005, na obra Pisador de Horizontes (2006).

• Marcos Siscar (Borborema-SP, 1964) - Poeta, tradutor, ensaísta e professor da Unicamp. Publicou os livros de poemas Não Se Diz (1999); Metade da Arte (2003); Interior Via Satélite (2010); e Manual de Flutuação Para Amadores (2015).

• Paula Glenadel (Rio de Janeiro-RJ, 1964) - Poeta, tradutora, ensaísta e professora de literatura francesa na UFF. Estreou com o livro de poemas A Vida Espiralada (1999) e publicou ainda os livros Quase Uma Arte (2005); e A Fábrica do Feminino (2008). Veja Paula Glenadel no poesia​.net n. 138.

• Ivan Junqueira (Rio de Janeiro-RJ, 1934-Rio de Janeiro, 2014) - Jornalista, poeta e crítico. Traduziu para o português poetas como T.S. Eliot, Charles Baudelaire e Dylan Thomas. Estreou com o livro de poemas Os Mortos (1964). Sua produção poética está em Poemas Reunidos (1999). Leia o Ivan Junqueira poeta no poesia​.net n. 210; e o tradutor no poesia​.net n. 380 e n. 3.

• José Paulo Paes (Taquaritinga-SP, 1926-São Paulo-SP, 1998) - Publicou mais de dez livros de poemas, entre os quais Meia Palavra (1973) e Socráticas (2001). Também escreveu livros para crianças e ensaios literários. Foi ainda editor e tradutor. Veja o José Paulo Paes poeta no poesia​.net n. 258 e n. 58. Leia o tradutor nas edições n. 64; e n. 128;

• Mario Quintana (Alegrete-RS, 1906-Porto Alegre-RS, 1994) - Poeta, jornalista e tradutor. Seu primeiro livro foi A Rua dos Cataventos (1940). Seguiram-se Canções (1946), Sapato Florido (1948), mais cerca de 20 títulos de poemas, além de livros infantis. Traduziu mais de 130 obras. Quintana apareceu nos boletins n. 301; e n. 73.

• Carlos Drummond de Andrade (Itabira-MG, 1902-Rio de Janeiro-RJ, 1987) - Jornalista, poeta, cronista, tradutor. Um dos nomes de maior destaque do modernismo brasileiro. Estreou com o livro Alguma Poesia (1930) e publicou quase 30 títulos de poesia, além de mais de 20 seleções de crônicas. Veja Drummond no boletim n. 476. E aqui um resumo de todas as páginas com o poeta no site Alguma Poesia: Drummond

• Dante Milano (Rio de Janeiro, 1899-Petrópolis, 1991) - De origem pobre, começou como revisor de jornal. Publicou seu primeiro livro, Poesias, em 1948. Foi também escultor e tradutor de obras de Horácio, Dante Alighieri, Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé. Aqui, Dante Milano já foi destaque em três boletins: n. 320; n. 241; e e n. 34.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

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Prêmio Claudio Willer de Poesia 2025

PRÊMIO CLAUDIO WILLER DE POESIA 2025

Amigas e amigos do poesia.​net, em 24 de junho, recebi uma boa notícia da União Brasileira de Escritores (UBE):

“A UBE anuncia, com alegria, que Carlos Machado, autor do livro Relógio sem rosto, é o vencedor do III Prêmio Cláudio Willer de Poesia. (...) A UBE parabeniza Carlos Machado, bem como todos os finalistas e participantes do concurso”.

O livro Relógio sem rosto é inédito. A UBE vai publicá-lo.


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Nove poemas em prosa


• Angélica Freitas  • Miguel Sanches Neto
• Marcos Siscar  • Paula Glenadel
• Ivan Junqueira  • José Paulo Paes
• Mario Quintana
• Carlos Drummond de Andrade
• Dante Milano

              



Kazimir Malevich - Portrait-of-woman-in-yellow-hat-1930
Kazimir Malevich, pintor russo, Retrato de mulher com chapéu amarelo (1930)


• Angélica Freitas

EU DURMO COMIGO

eu durmo comigo / deitada de bruços eu durmo comigo / virada pra direita eu durmo comigo / eu durmo comigo abraçada comigo / não há noite tão longa em que não durma comigo / como um trovador agarrado ao alaúde eu durmo comigo / eu durmo comigo debaixo da noite estrelada / eu durmo comigo enquanto os outros fazem aniversário / eu durmo comigo às vezes de óculos / e mesmo no escuro sei que estou dormindo comigo / e quem quiser dormir comigo vai ter que dormir do lado.



• Miguel Sanches Neto

NO PAÍS DE JOSÉ PAULO PAES

A voz era grossa e compassada. Movia-se com calma, ultimamente ajudado por uma bengala, como um grande animal mítico nos campos sagrados do Senhor.

Para nos receber em seu escritório, que ficava no fundo do quintal, fazia-nos cruzar a cozinha. Isso dava à visita, principalmente a quem conhecia a carga simbólica da cozinha nos hábitos da província, a certeza de ter franqueado o coração da casa.

Um ou outro gato, acolhido por Dora, a diligente companheira, se espreguiçava no pequeno jardim protegido por altos muros. Longe, na avenida, movimentavam-se as águas do trânsito em seu burburinho contínuo.

No escritório, móveis e livros tudo transpirava uma tranquilidade do sem tempo. A conversa nunca era exaltada, nem havia farpas vibrando no ar. Com sua voz franca, o poeta iluminava a tarde.

Depois, quando nos conduzia de volta ao portão, nós nos víamos órfãos na grande avenida barulhenta — como se, expulsos do tempo sem margens, caíssemos numa prosaica realidade.




Kazimir Malevich - Reapers-1929
Kazimir Malevich, Ceifeiras (1929)


• Marcos Siscar

JARDIM DE VESTÍGIOS

Minha vida é o que vejo. A criança na bicicleta subindo a rua. A chuva caindo num dia quente. Seus cabelos despenteados. A cidade vista de longe. Seu rosto visto de perto. Os olhos fechados no abraço. Meu amigo rindo. O dono do boteco. A roupa de um verde vivo. As mãos da menina enquanto dança. Um carro mal estacionado. O funcionário que olha desconfiado. Um desconhecido andando à frente. Folhetos no lixo. Um barulho de tiro. A briga depois da esquina. Formiga na ponta de uma folha. Unha suja. Mosca em cima da merda. Um velho trator com cheiro de óleo. TV ligada. Olhos abertos. Mato crescendo na sarjeta. Alguns livros empilhados. Caminhões. Casas passando à beira da estrada. Gato em cima do muro. Nuvens brancas sujando o azul. O muro pichado. 0 ritmo acelerado. A parada. O detalhe. O conjunto. De novo os olhos fechados. A boca entreaberta. E ao fundo um murmúrio de metáforas selvagens. Jardim de vestígios cuidadosamente organizados. A vida é o que vejo. Montagem é tudo.



• Paula Glenadel

A DOADORA

A dona do bar vai doar um rim para o marido. Ela me estende os cigarros que compro todo dia. É amor isso? pergunta espantada. Eu vi em reportagem na tevê francesa homens do terceiro mundo nas fronteiras da Europa: venderam seus rins e nunca mais foram saudáveis. Alguns receberam menos do que o combinado. A dona do bar doa porque senão ele morre e isso ela não pode suportar. Por que as mulheres dos homens do primeiro mundo doariam um de seus rins aos seus maridos se podem comprar um? A dona do bar não tem dinheiro ou não pensou nisso. Fala comigo e seus olhos castanhos se arregalam.




Kazimir Malevich - Girl-in-the-country
Kazimir Malevich, Menina no campo


• Ivan Junqueira

CRÔNICA

Quando o corpo da criança deu à praia, o céu começou a chorar estrelas e a lua se vestiu de preto. De paisagens desconhecidas, submersas na orla do tempo e da salsugem, surgiram então velhos pescadores e o envolveram num lençol de espumas, onde os peixes e as conchas haviam escrito o código das águas mais profundas.

De manhã, uma onda lançou-o à praia, onde o aguardava a multidão em delírio. A claridade embebia seu perplexo, absorto perfil de sal e pânico.

O bairro do Leblon viveu um dia de festa.



• José Paulo Paes

DO NOVÍSSIMO TESTAMENTO

e levaram-no maniatado

e despindo-o o cobriram com uma capa de escarlata

e tecendo uma coroa d’espinhos puseram-lha na cabeça e em sua mão direita uma cana e ajoelhando diante dele o escarneciam

e cuspindo nele tiraram-lhe a cana e batiam-lhe com ela na cabeça

e depois de o haverem escarnecido tiraram-lhe a capa vestiram-lhe os seus vestidos e o levaram a crucificar

o secretário da segurança admitiu os excessos dos policiais e afirmou que já mandara abrir inquérito para punir os responsáveis




Kazimir Malevich - Desportistas
Kazimir Malevich, Esportistas


• Mario Quintana

O APANHADOR DE POEMAS

Um poema sempre me pareceu algo assim como um pássaro engaiolado... E que, para apanhá-lo vivo, era preciso um cuidado infinito. Um poema não se pega a tiro. Nem a laço. Nem a grito. Não, o grito é o que mais o espanta. Um poema, é preciso esperá-lo com paciência e silenciosamente como um gato. É preciso que lhe armemos ciladas: com rimas, que são o seu alpiste; há poemas que só se deixam apanhar com isto. Outros que só ficam presos atrás das catorze grades de um soneto. É preciso esperá-lo com assonâncias e aliterações, para que ele cante. É preciso recebê-lo com ritmo, para que ele comece a dançar. E há os poemas livres, imprevisíveis. Para esses é preciso inventar, na hora, armadilhas imprevistas.



• Carlos Drummond de Andrade

DECLARAÇÃO DE AMOR

Minha flor minha flor minha flor. Minha prímula meu pelargônio meu gladíolo meu botão-de-ouro. Minha peônia. Minha cinerária minha calêndula minha boca-de-leão. Minha gérbera Minha clívia. Meu cimbídio. Flor flor flor. Floramarílis. Floranêmona. Florazálea. Clematite minha. Catleia delfínio estrelítzia. Mmha hortensegerânea. Ah, meu nenúfar. Rododendro e crisântemo e junquilho meus. Meu ciclâmen. Macieira-minha-do-japão. Calceolária minha. Daliabegônia minha. Forsitiaíris tuliparrosa minhas. Violeta... Amor-mais-que-perfeito. Minha urze. Meu cravo-pessoal-de-defunto. Minha corola sem cor e nome no chão de minha morte.



• Dante Milano

SENTADO NUMA PEDRA

Sentado numa pedra, principio a sonhar.

Olho em volta a paisagem inútil. A noite, como sempre, triste mas serena. Um céu longínquo, indiferente, inumano. E a terra com a sua dureza. Casas de pedra, grades de ferro, calçadas de pedra. Árvores crescendo entre pedras. E o mar batendo nas pedras.

Tirando as faces, as mãos, não há senão caírem as lágrimas nas pedras.

Sentado numa pedra, principio a pensar.




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Carlos Machado, 2025



• Todos os poemas:
   Fernando Paixão (org.)
   in Antologia do Poema em Prosa no Brasil
   Ateliê Editorial, Editora da Unicamp, Cotia-SP, 2024
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* Alejandra Pizarnik
"La Carencia" in Poesía Completa (1955-1972). Lumen, Barcelona, 2000
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* Imagens: quadros do pintor russo Kazimir Malevich (1878-1935)