Pedro Nava
Caros,
O lugar é Juiz de Fora. A época, por volta de 1911. Dona Maria Luísa, a
Inhazinha, referida no texto ao lado, é a avó materna do autor, Pedro Nava
(1903-1984).
Vejam a delícia que é este trecho de Balão Cativo, o segundo
volume (de um total de seis) das memórias de Nava.
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Casca grossa,
miolo doce
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Pedro Nava |
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QUE NEM CAMBUCÁ
A D. Maria Luísa da Cunha Jaguaribe tinha dupla personalidade. Tanto era áspera
e desagradável para os que não lhe calhavam, como charmosa e delicada
para os que lhe caíam no goto. Duas consistências, que nem cambucá: casca
grossa, miolo doce. É por isto que a casa vivia cheia dos eleitos do segundo
grupo. Começava à hora do café, com a presença da tia Regina que chegava de
rosário em punho e tinha a peculiaridade de desfiá-lo conta por conta, mistério
por mistério, comendo ou conversando. Ia entremeando uma mastigadela de pão
cheia de graça, o Senhor é convosco, do bolo de fubá Santa Maria Mãe de Deus, um
gole de xícara agora e na hora de nossa morte, com as novidades do dia,
horrorizada de saber que a Siá Beta tinha se mudado para a Rua do Sapo que
estais no céu, santificado seja Vosso Nome e indignada com o mutismo do Paleta
durante visita que lhe fizera e em que o grosseirão, Inhazinha, nem entrara em
conversação, enfim... seja feita Vossa vontade porque cada um dá o que tem,
assim como nós perdoamos os nossos devedores, não nos deixeis cair em tentação,
que homem insuportável! coitada de Berta! e livrai-nos Senhor de todo mal,
amém... Outro, pontual, era o Dr. Bernardo Aroeira com D. Manuelita, sua mulher.
Eram compadres de meus avós e vinham sempre com um dos filhos — o Mário, o
Biscuit, o Manuelito ou uma das filhas — a Alice, a Mariquinhas, a Simini. Elas
arvoravam, invariavelmente, penteado idêntico e esquisito em que figurava fita
larga como barrigueira, passada na testa feito curativo de cabeça quebrada.
Ultimamente a D. Manuelita tornara-se notória por doença que lhe dera de crescer
a barriga e com a qual não tinham atinado nem o Dr. Lindolfo nem o Dr. Vilaça. A
Senhorinha, parteira, dizia que era menino. Os médicos, que absolutamente!
Não pode ser gravidez, não, Dona Senhorinha... Pois não vê que D. Manuelita é
pessoa de cinqüenta e tantos, que teve um filho depois do outro e que o mais
moço está agora com vinte anos? ora esta! Pois a razão estava com a Senhorinha e
o casal Aroeira à hora dos netos, ganhou mais um filho — o Carlinhos — que a mãe
de cabeça branca amamentava muito à vontade, rindo tanto, tanto, tanto... e
mostrando o rebento de casa em casa, em companhia do marido que depois dessa
paternidade tardia adotara ar a um tempo sonso,
modesto e capaz. Tratavam-no com admiração no Clube, na Rua Halfeld, no Foltran
e na redação de
O Farol. Sim senhor, Seu Aroeira, muito bem...
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