O poeta, que escreveu “Minas não há mais”, depois afirmou: Minas há, sim. Em seu aniversário de 114 anos, peço vênia e discordo
Drummond: estátua em Copacabana
“Minas não há mais”, sentenciou Carlos Drummond de Andrade em diálogo (ou solilóquio?)
com seu brasileiríssimo e universal José, num poema publicado em 1942.
Naturalmente, o tímido e arredio Drummond — que hoje, 31/10/2016, estaria completando 114
anos — tratou depois de desfazer esse suposto cancelamento das Minas Gerais dos mapas
geográficos e existenciais.
Em carta de 1982 ao amigo belo-horizontino Francisco Iglésias (1923-1999), Drummond esclarece:
“Minas há e — acrescento — haverá sempre, se soubermos preservar certas marcas imunes à
industrialização e ao cosmopolitismo, e conviventes com eles. A gente carrega Minas no
sangue, por onde quer que vá…”
O poeta diz mais: o poema “José”, que decreta a peremptória extinção do solo mineiro,
fora escrito em momento de crise existencial. E finaliza: “Mas o próprio ‘José’, no final,
procura libertar-se do desespero, marchando não sabe para onde — para Minas reencontrada
no íntimo — é a explicação que me dou. Não sei se é boa. É a que eu encontro, tantos anos
depois desses versos amargos.”
Claro que a explicação de Carlos-José é boa. Como ensina o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz,
“não há poema em si, mas em mim ou em ti”. Ou, em outras palavras, a explicação do poema está
não exatamente no texto mas no leitor. Então, com base em Paz, peço reverente vênia ao
aniversariante e apresento aqui minha leitura pessoal da sentença joseana.
*
Drummond lê seu poema “José”, publicado em 1942
Para mim, de fato, Minas não há mais. E Minas, aqui, não quer dizer as Minas Gerais de Drummond, Guimarães Rosa, Henriqueta Lisboa, Donizete Galvão. Minas é o chão natal, qualquer um. Baseio-me na psicologia do migrante. Baiano do Recôncavo — onde a Bahia é mais baiana, diria Caetano —, saí de lá há mais de quatro décadas. Obviamente, como avisa Caymmi, “a Bahia tá viva, ainda lá”, e lá tenho parentes, amigos e memórias.
Contudo, o chão onde se brota, uma vez abandonado, não permite retorno. É a sina do migrante. Quem um dia saiu de casa sabe do que estou falando. Claro que pode haver o retorno físico. Mas não existe readmissão natural para os exilados. Não há como, depois de cortado o cordão umbilical, reaconchegar-se no útero materno.
A síndrome do migrante foi bem retratada num filme italiano que me marcou muito,
Três irmãos (1980), de Francesco Rosi, o mesmo diretor de Crônica de uma morte anunciada (1987). O filme mostra que toda a nostalgia e toda a mitologia do torrão natal residem em coordenadas ideais de espaço-tempo-memória. Nenhuma equação de Einstein consegue trazer para o chão esse lugar multidimensional e fazê-lo coincidir com o áspero asfalto de nosso dia a dia, mesmo que o asfalto esteja plantado no endereço natal.
Para quem nunca se afastou, esse endereço funciona como uma espécie de conforto, o pacato exercício de pisar em terreno conhecido. É como residir na mesma casa durante muitos anos. De olhos fechados, o corpo já sabe quantos passos são necessários para ir da sala ao corredor e daí derivar para o quarto ou a porta da rua.
Mas tudo é diferente para quem migra. Não é à toa que o sábio nordestino da canção “Último
pau de arara” decide resistir estoicamente à seca e só deixar seu Cariri quando não houver mais jeito. Ele certamente adivinha como será a vida depois.
É por isso que, para mim, sem nenhum descolamento afetivo, Bahia não há mais. Mas pior do que isso é perceber que aquele ponto do espaço-tempo-memória não está mais onde um dia esteve, nem se encontra em nenhum outro lugar. Quem migra para a China não passa a ser chinês: continua sendo o que era antes, mas não só. Nesse desencontro, de volta a Drummond e à explicação dele, a única saída disponível é aquela encontrada por José: seguir em frente, marchar, mesmo sem saber para onde.
• Drummond, José e a
síndrome do migrante Crônica publicada originalmente no
site cultural
Kultme 29 de outubro de 2016 _______________ * W.H. Auden,
no poema
"First Things First"