Número 20

16/09/2018

«Só a tristeza tem história.» (Amélia Pais) *
 

Edu Lobo e Chico Buarque
João Cabral de Melo Neto



Caros,

Nesta crônica, trato de atitudes engraçadas assumidas por poetas em nome da perfeição. Os protagonistas são o espanhol Juan Ramón Jiménez (1881-1958), Prêmio Nobel de Literatura de 1956, e nosso conhecidíssimo pernambucano João Cabral de Melo Neto.

Dois Joões e suas manias em torno da perfeição.

Esta crônica foi publicada originalmente no site cultural Kultme.com.br em 06/08/2017.

Carlos Machado


 

 



 

O poeta que roubava livros e outras histórias imperfeitas

         
Carlos Machado
 


João Cabral, Juan Ramón Jiménez e seus estranhos namoros com a perfeição

Drummond
Juan Ramón Jiménez: assalto às bibliotecas


Conta-se que o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez, Prêmio Nobel de 1956, em dado momento chegou à conclusão de que alguns de seus primeiros poemas publicados não estavam à altura de seu talento. Rigoroso, perfeccionista, Jiménez decidiu varrer aqueles versos de sua biografia. Tentou, então, eliminar todos os exemplares de seus dois livros iniciais, Alma de Violeta e Ninfeias, ambos de 1900. Mas como o poeta queria fazer isso? Começou a roubá-los, um por um, das bibliotecas.

Na linguagem de época, dizia-se que o poeta era um “neurastênico”. Será? Até certo ponto, todo artista sério sofre um pouco dessa doença de correr atrás da perfeição. Aqui mesmo, no Brasil, temos um exemplo similar de outro poeta, um de nossos maiores: o pernambucano João Cabral de Melo Neto.

Isso aconteceu quando João Cabral era o embaixador brasileiro em Quito, Equador, e estava para lançar o livro A Escola das Facas (1980). Ele aprontou os originais e enviou-os à editora, no Rio de Janeiro. Naturalmente, manteve consigo uma cópia. E com essa cópia começaram os problemas.

Volta e meia, o poeta relia os textos e alterava um verso, uma estrofe. E tome enviar telegramas à editora: na página tal, estrofe tal, trocar a palavra “isso” por “aquilo”. No poema tal, o primeiro verso fica assim...

Nisso, remetia vários telegramas por dia.

O próprio João Cabral percebeu que aquilo não podia continuar. Afinal, a editora é uma indústria, um negócio, e desse jeito o trabalho ficaria impossível. Tomou, então, uma medida radical: lacrou os originais num envelope e entregou-os a um amigo de outra embaixada em Quito, dizendo:

— Guarde este envelope no cofre de sua embaixada. E não me devolva, nem se eu pedir. Você só vai me dar isso de volta mediante troca: quando eu lhe trouxer um exemplar do livro.

*

Conhecendo-se essa história de João Cabral, o que se pode dizer de Juan Ramón Jiménez? Até que nem tão neurastênico assim. Os poetas — e artistas em geral — costumam fazer oferendas muito elevadas no altar da deusa Perfeição. Infelizmente, os favores dessa caprichosa senhora não são fáceis de alcançar.

Gilberto Gil já deixou isso bem claro no samba Meio de Campo.

Dominguinhos e Gilberto Gil - Meio de Campo

MEIO DE CAMPO
(Gilberto Gil)

Prezado amigo Afonsinho
Eu continuo aqui mesmo
Aperfeiçoando o imperfeito
Dando um tempo, dando um jeito
Desprezando a perfeição
Que a perfeição é uma meta
Defendida pelo goleiro
Que joga na seleção
E eu não sou Pelé nem nada
Se muito for, eu sou um Tostão
(Fazer um gol nessa partida
Não é fácil, meu irmão)


poesia.net
Outras Palavras

Carlos Machado, 2018

•  O poeta que roubava livros e outras histórias imperfeitas
    Crônica publicada originalmente no site cultural Kultme,
    em 06 de agosto de 2017
_______________
* Amélia Pais
  in "Só a tristeza tem história"