Número 5

Segunda-feira, 16 de setembro de 2002 

"E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno." (C.D.A.)

  O homem; as viagens

Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002

 

No poema "O Homem; As Viagens", Drummond contrapõe uma visão humanista à tecnocracia da corrida espacial.

Para os mais jovens, é interessante lembrar que os anos 60 e pelo menos a primeira metade dos 70 foram marcados pela competição entre os Estados Unidos e a União Soviética em muitos campos, inclusive na exploração do cosmos, numa disputa que recebeu o nome de corrida espacial.

Não resta dúvida de que dessa corrida resultaram importantes avanços científicos e tecnológicos. Mas a portentosa máquina de propaganda americana utilizou extensamente as viagens ao espaço — em especial a descida na Lua, em 1969 — como forma de demonstrar a superioridade de sua tecnologia e de seus valores, assim como as maravilhas do estilo de vida na terra do Tio Sam.

Neste poema, que foi inicialmente publicado como crônica no Jornal do Brasil, Drummond mostra que, mais importante do que chegar a Marte ou a qualquer outro mundo distante, o fundamental para a humanidade é resolver os problemas da fome, da desigualdade e das injustiças aqui mesmo.

Para isso, ele propõe que o ser humano faça uma viagem de si a si mesmo e questione o que andamos fazendo com nossos semelhantes e com nosso velho e maltratado planeta Terra.

 

Carlos Machado

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Centenário do poeta:
31 de outubro de 2002

 

O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.

Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte
ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.

Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro
diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto
é isto?
idem
idem
idem.

O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.

Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.

Restam outros sistemas fora
do solar a col-
onizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.

Drummond: 100 anos
Carlos Machado, 2002

Carlos Drummond de Andrade
In As Impurezas do Branco
José Olympio, 1973
© Graña Drummond