Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002
Contos Plausíveis:
capa da edição de 1991
Para quem lê com má vontade, são histórias completamente
sem pé nem cabeça. Mas se você reunir alguma disposição para a poesia, vai
notar que esses contos de Drummond são, como diz o título, perfeitamente
plausíveis ― no sentido, esclarece o poeta, de críveis, prováveis,
verossímeis.
Publicados inicialmente em 1981, numa edição especial de pequena tiragem, os
Contos Plausíveis apareceram pela primeira vez para o grande público
em 1985. Sua origem é a mesma das crônicas do poeta: a coluna das terças,
quintas e sábados no Jornal do Brasil, que a redistribuía para outros
jornais do país.
Tanto na edição de 1981 como na de 1985, os 150 contos
plausíveis trazem ainda uma brincadeira. Cada um deles ―
brevíssimo, ocupa menos de uma página ― vem acompanhado de uma ilustração,
assinada pelas artistas Irene Peixoto e Márcia Cabral. Só que a imagem não se refere ao conto da mesma página. Então o leitor fica convidado
a descobrir, no livro, qual imagem corresponde a qual texto. "Parece que na
vida também é assim: as pessoas e coisas nem sempre andam de par constante",
diz Drummond no prefácio.
Bem, por mais fantásticos que os textos pareçam, há sempre
um pé na realidade. Confira, por exemplo, a história do rei e da opinião
pública (ao lado) e lembre-se de que, publicados em 1981, esses textos foram
escritos durante a ditadura militar. |
A OPINIÃO EM PALÁCIO
O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o
poder com a Opinião Pública.
―
Chamem a Opinião Pública ―
ordenou aos serviçais.
Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que
a Opinião Pública deixara de freqüentar lugares públicos. Recolhera-se ao
Beco sem Saída, onde, furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez
em quando.
Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer
ao Palácio Real, onde Sua Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo,
lhe disse:
―
Preciso de ti.
A Opinião, muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra
ou preferia não exercitá-lo. O Rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e
perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos
voadores, horóscopos, correção monetária, essas coisas. E outras. A
Opinião Pública abanava a cabeça: não tinha opinião.
―
Vou te obrigar a ter opinião ―
disse o Rei, zangado. ―
Meus especialistas te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso
mais reinar sem o teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as
matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em
particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável.
E virando-se para os serviçais:
―
Levem esta senhora para o Curso Intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela
só volte aqui depois de decorar bem as apostilas.
A VOLTA DO GUERREIRO
Os homens que voltaram da guerra traziam feridas e pesadelos. Encontraram
suas amadas indiferentes. Passara tanto tempo que algumas nem se lembravam
deles, e muitas tinham estabelecido novos amores.
Uma, entretanto, permaneceu lembrada e fiel, e atirou-se com fúria
passional aos braços do ex-guerreiro. Ele a repeliu, dizendo:
―
Não quero mais ver a guerra diante de mim.
― Eu
não sou a guerra, sou o amor, querido
―
respondeu-lhe a mulher, assustada.
―
Você é a imagem da guerra, você me agarrou como o inimigo na luta corpo a
corpo, eu não quero saber de você.
―
Então farei carícias lentas e suaves.
― O
inimigo também passa a mão de leve pelo corpo do soldado caído, para tirar
o que houver no uniforme.
―
Ficarei quieta, não farei nada.
―
Não fazer nada é a atitude mais suspeita e mais perigosa do inimigo, que
nos observa para nos atacar à traição.
Separaram-se para sempre.
DESEMPREGO
―
Não está me reconhecendo? Sou a terceira mulher do Sabonete Araxá. Aquelas
do anúncio.
― Eu
sei. As três mulheres do poema de Manuel Bandeira.
―
Não, do anúncio do sabonete. O poema veio depois, nós já existíamos antes.
― E
que foi feito das duas outras?
― A
primeira passou a trabalhar para a Sentinela Juropapo. A segunda está no
galarim, só trabalha para a Secom. Eu estou desempregada, não dá para me
arranjar
uma boa mordomia no INPS? Sei que é difícil me aposentar, porque já tenho
idade de sobra, mas...
EXCESSO DE COMPANHIA
Os anjos cercavam Marilda, um de cada lado, porque Marilda ao nascer
ganhou dois anjos da guarda.
Em vez de ajudar, atrapalhou. Um anjo queria levar Marilda a festas, o
outro à natureza. Brigavam entre si, e a moça não sabia a qual deles
obedecer. Queria agradar aos dois, e acabava se indispondo com ambos.
Tocou-os de casa. Ficou sozinha, sem apoio espiritual mas também sem
confusão. Os dois vieram procurá-la, arrependidos, pedindo desculpas.
― Só
aceito um de cada vez. Passa uns tempos comigo, depois mando embora, e o
outro fica no lugar. Dois anjos ao mesmo tempo é demais.
Agora Marilda é o anjo da guarda dos seus anjos, um de cada vez.
|