Número 40

Quarta-feira, 4 de dezembro de 2002

"Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças." (C.D.A.)

  A máquina do mundo

                                                        

Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002


 

ponto final

Amigos,

Este boletim em homenagem ao poeta Carlos Drummond de Andrade chega aqui ao ponto final. Foram três meses (4 de setembro a 4 de dezembro) de comunicação poética, em lenta degustação de biscoitos finos fabricados pelo mestre itabirano.

De minha parte, esta série de páginas eletrônicas me causou intensa alegria. Leitor do poeta há muitos janeiros, resolvi comemorar seu centenário distribuindo alguns poemas por e-mail. No início, enviei-os apenas a umas 20 pessoas muito próximas. Aos poucos, elas me pediam para incluir novos endereços em minha lista. Termino, agora, com exatos 201 nomes.

Além disso, muitos tomaram a iniciativa de enviar as páginas, eles mesmos, a dezenas (às vezes centenas) de amigos. Não tenho a menor idéia do verdadeiro alcance numérico dessa inesperada corrente poética. Sei apenas que o boletim chegou a Portugal, Itália, Estados Unidos e Porto Trombetas, no Pará (eu moro em São Paulo).

Para mim, aí está uma prova irrefutável do vasto poder de comunicação da poesia drummondiana. Ou, abrindo o leque, uma prova do imenso vigor — nos sentidos de força e vigência — da própria poesia. Alguns e-mails que recebi de leitores deste boletim dão pistas do que acabo de dizer.

“A mãe de uma amiga perdeu as defesas que tinha contra o computador para poder curtir suas mensagens. Copiou tudinho, imprimiu, encadernou, criou um objeto de desejo”, diz Alexandre Luiz Rocha (de Limeira, SP).

"A gente conhece os poemas, já leu sei lá quantas vezes, essas coisas. Mas encontrá-los assim, de repente, isolados, na tela do computador, isso talvez nem o próprio Drummond imaginaria", surpreende-se outra leitora, uma escritora. Outros, talvez não tão ligados à poesia, foram fisgados pela incursão de Drummond no mundo pop, ao traduzir letras dos Beatles (boletins n. 10 e 15). Alguns, mais jovens, expressaram seu fascínio com a descoberta, por exemplo, do poema "Áporo" e das astúcias concertadas pelo poeta em sua elaboração. Enfim, uma curiosa gama de ações diante do encontro, ou reencontro, com o universo drummondiano.

De tudo isso, fico com uma certeza: por mais que a tecnologia esteja voltada somente para a produção e para o "esplêndido negócio" (“e as mãos tecem apenas o rude trabalho”, diz Drummond), há brechas para nela infiltrar alguma poesia.

Meu sonho é que, no futuro, mais brasileiros possam partilhar de biscoitos finos como esses que nos oferece o poeta.

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Para fechar esta série com chave de ouro, o majestoso "A Máquina do Mundo" — escolhido, no início de 2000, como o melhor poema brasileiro de todos os tempos. A eleição foi feita por um júri de dez críticos e escritores convidados pelo jornal Folha de S. Paulo.

Sei que essa coisa de "o melhor" é sempre uma fonte inesgotável de polêmica. De todo modo, trata-se de uma das peças de mais amplo fôlego do poeta mineiro. Representa também um diálogo de Drummond com a tradição poética ocidental, uma vez que essa concepção da máquina do mundo (essa entidade fantástica que detém a explicação de tudo) já fora visitada por vários outros poetas, entre os quais Dante Alighieri e Luís de Camões.  Observem, ainda, que a máquina drummondiana tem traços da tentação de Cristo, segundo os Evangelhos.

Na esteira criada por Dante, Camões e Drummond também embarcou, recentemente, o poeta Haroldo de Campos com o livro A Máquina do Mundo Repensada. (Ateliê Editorial, 2000). Com certeza, esse é um tema que ainda vai dar inspiração para muitos versos.

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poesia.net
Conforme escrevi no número  anterior, leitores deste boletim me sugeriram criar novo e-jornal poético. Aceitei a sugestão e passarei a produzir um novo boletim, poesia.net, semanal.

Até mais ler,

Carlos Machado

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo."

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que tantos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Drummond: 100 anos
Carlos Machado, 2002

Carlos Drummond de Andrade
In Claro Enigma
Ed. Record, 1951
© Graña Drummond