Myriam Fraga
Caros,
Uma poesia substantiva e singularmente feminina —
assim se poderia caracterizar o trabalho da baiana Myriam Fraga. De fato, seus
versos são fortes, vibrantes, e constroem o clima de encantamento poético com
coisas do chão e do dia-a-dia.
Em seu livro Femina (1996), de onde extraí o poema ao lado, todos esses
traços estão presentes. Nessa obra destacam-se — quer
dizer, eu destaco — os textos "Maria Bonita" e "Sete
Poemas de Amor e Desespero, de Maria de Póvoas, Também Chamada Maria dos Povos,
à Partida do Poeta Gregório de Mattos para o Degredo em Angola".
As duas peças têm um eixo comum. São apelos que uma mulher, forte e apaixonada,
dirige ao seu homem. Diz Maria Bonita a Lampião:
Sou montaria e cavalo,
Fúria e faca.
Ferro em brasa na espádua
Sou teu gado,
Tua mulher, tua terra,
Tua alma,
Tua roça. Coivara
Que incendeias e apagas,
Tua casa.
E pergunta Maria de Póvoas a Gregório de Mattos:
Como posso, Poeta,
Decifrar-te
Se és sempre a incerteza,
A dissonante
Face dupla do amor,
Sombria e clara?
A suíte com os sete poemas de Maria de Póvoas, fundada em personagens
históricos, faz parte de outra faceta de Myriam Fraga. Ela também produziu um
livro, Sesmaria — publicado em 1969 e reeditado
em 1999 —, que tem como temas fatos e figuras da
história colonial baiana.
Embora, estranhamente, quase não tenha reverberação na grande imprensa, Myriam
Fraga é, sem a menor dúvida, um dos maiores nomes da atual poesia brasileira.
Um abraço, e até mais ler.
Carlos Machado
Veja também sobre Myriam Fraga o boletim:
- poesia.net 273 |
Feminino, singular
|
Myriam Fraga |
|
A CASA
Pedra sobre pedra
Construí esta casa:
Tijolo, sonho e argila.
Custaram-me os alicerces
A metade da asa
Direita,
A outra metade,
Serviu de escora
Às traves que a sustentaram.
A asa esquerda perdeu-se
Na argamassa.
Esta casa, para fazer,
Levou-me anos
De solidão e fomes
Aplacadas.
Uma casa tão clara,
Aberta aos ventos,
E a cada dia sempre
Renovada.
Aqui plantei minha vida,
Nos esquadros
E soleira das portas.
Ancoradouro e barco,
Minha casa.
Daqui se ouvia o mar
E o canto das sereias,
Se nostálgico das janelas
O olhar se alongava.
Mas o perfume do incenso
Rolava nos altares, deuses lares,
E eu ficava e fui sempre
A guardiã da casa.
Pássaro do abismo,
Mensageiro da desgraça,
Meus olhos marinheiros
Pressentiram o desastre.
Ventos do sul sopraram
Sobre a casa. Marés de março
Enormes, com suas vagas,
Submergiram e arrasaram
Da soleira aos telhados.
Olho de furacão,
Espiral de sargaços,
Conheci o sumidouro,
A fúria da voragem.
Sobrevivente do escarcéu
Hoje, náufraga, na casa,
Sei que as paredes permanecem
Intactas, com suas marcas,
E novamente, aos poucos,
Com meus dedos quebrados,
Vou recompondo lentamente
A cumeeira arrasada.
|