Número 13

São Paulo, quarta-feira, 2 de abril de 2003 

"Abril é o mais cruel dos meses." (T.S. Eliot)
 


Myriam Fraga


Caros,

Uma poesia substantiva e singularmente feminina assim se poderia caracterizar o trabalho da baiana Myriam Fraga. De fato, seus versos são fortes, vibrantes, e constroem o clima de encantamento poético com coisas do chão e do dia-a-dia.

Em seu livro Femina (1996), de onde extraí o poema ao lado, todos esses traços estão presentes. Nessa obra destacam-se quer dizer, eu destaco os textos "Maria Bonita" e "Sete Poemas de Amor e Desespero, de Maria de Póvoas, Também Chamada Maria dos Povos, à Partida do Poeta Gregório de Mattos para o Degredo em Angola".

As duas peças têm um eixo comum. São apelos que uma mulher, forte e apaixonada, dirige ao seu homem. Diz Maria Bonita a Lampião:

Sou montaria e cavalo,
Fúria e faca.
Ferro em brasa na espádua
Sou teu gado,
Tua mulher, tua terra,
Tua alma,
Tua roça. Coivara
Que incendeias e apagas,
Tua casa.


E pergunta Maria de Póvoas a Gregório de Mattos:

Como posso, Poeta,
Decifrar-te
Se és sempre a incerteza,
A dissonante
Face dupla do amor,
Sombria e clara?


A suíte com os sete poemas de Maria de Póvoas, fundada em personagens históricos, faz parte de outra faceta de Myriam Fraga. Ela também produziu um livro, Sesmaria publicado em 1969 e reeditado em 1999 , que tem como temas fatos e figuras da história colonial baiana.

Embora, estranhamente, quase não tenha reverberação na grande imprensa, Myriam Fraga é, sem a menor dúvida, um dos maiores nomes da atual poesia brasileira.

Um abraço, e até mais ler.

Carlos Machado




Veja também sobre Myriam Fraga o boletim:
- poesia.net 273

Feminino, singular

Myriam Fraga

 




A CASA



Pedra sobre pedra
Construí esta casa:
Tijolo, sonho e argila.

Custaram-me os alicerces
A metade da asa
Direita,
A outra metade,
Serviu de escora
Às traves que a sustentaram.

A asa esquerda perdeu-se
Na argamassa.

Esta casa, para fazer,
Levou-me anos
De solidão e fomes
Aplacadas.

Uma casa tão clara,
Aberta aos ventos,
E a cada dia sempre
Renovada.

Aqui plantei minha vida,
Nos esquadros
E soleira das portas.
Ancoradouro e barco,
Minha casa.

Daqui se ouvia o mar
E o canto das sereias,
Se nostálgico das janelas
O olhar se alongava.

Mas o perfume do incenso
Rolava nos altares, deuses lares,
E eu ficava e fui sempre
A guardiã da casa.

Pássaro do abismo,
Mensageiro da desgraça,
Meus olhos marinheiros
Pressentiram o desastre.

Ventos do sul sopraram
Sobre a casa. Marés de março
Enormes, com suas vagas,
Submergiram e arrasaram
Da soleira aos telhados.

Olho de furacão,
Espiral de sargaços,
Conheci o sumidouro,
A fúria da voragem.

Sobrevivente do escarcéu
Hoje, náufraga, na casa,
Sei que as paredes permanecem
Intactas, com suas marcas,
E novamente, aos poucos,
Com meus dedos quebrados,
Vou recompondo lentamente
A cumeeira arrasada.


 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

•  Myriam Fraga
    In Femina
   
Fundação Casa de Jorge Amado/Copene
    Salvador, 1996