Número 15

São Paulo, quarta-feira, 16 de abril de 2003 

"Duas vezes se morre: / Primeiro na carne, depois no nome." (Manuel Bandeira)
 


Jorge de Lima


Caros,

O médico e poeta alagoano Jorge de Lima (1893-1953) é dono de uma das obras mais profundas e, ao mesmo tempo, menos exploradas da poesia brasileira. Com um tom marcadamente enigmático e místico, seu texto exibe apurado rigor e requer leitura cautelosa.

Por causa dessa dificuldade, praticamente só se conhece o Jorge de Lima mais palatável, de poemas como "Essa Negra Fulô" e "G.W.B.R", bem marcados pelo espírito do primeiro modernismo, nos anos 1920.

No entanto, na década seguinte, a partir do livro Tempo e Eternidade (1935), escrito em parceria com o mineiro Murilo Mendes, Jorge de Lima dá início a essa fase mais densa que define a maior parte de seu trabalho.

Católico — mas não carola, porque seu elevado nível de elaboração poética passa a quilômetros de um mero versejador papa-hóstia —, ele se torna um mestre da poesia metafísica.

O texto ao lado é o bloco 25 do longo poema "Anunciação e Encontro de Mira-Celi", publicado no livro Obra Poética, em 1950. Ao folhear um álbum de retratos, encontra-se uma família cheia de mistérios, violências, incestos...

Na opinião do crítico e poeta Mário Faustino, se esse texto tivesse sido escrito originalmente numa língua mais divulgada, já seria o suficiente para inscrever Jorge de Lima entre os grandes poetas internacionais do século 20.

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O poema "O Grande Circo Místico", de Jorge de Lima, inspirou o balé de mesmo nome, que tem música de Edu Lobo e Chico Buarque.

Um abraço, 

Carlos Machado



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Veja também sobre Jorge de Lima o boletim:
- poesia.net 291

Álbum de família

Jorge de Lima

 



familia



AS PESSOAS DE MIRA-CELI



25.

O avô tinha sido um ancião convencional,
que se enterrou de sobrecasaca, e polainas;
e a avó
uma menina pálida que morreu ao pari-la;
o pai fez algumas baladas;
contam que tinha uma luneta para olhar ao longe.
Daí
a mão dobra a página do livro,
e a história da tetraneta finda com uma estocada
   [ no ventre:
há destinos travados, lenços quentes de lágrimas,
algum incesto, uma violação sobre um sofá antigo.

Quando a mão dobra a página, há rastros de sangue
   [ no soalho.
Esta é a mais nova das cinco.
Veja que os seios são como neve que nós nunca  
   [ vimos
e ninguém nunca viu o pai que lhe fez um filho;
e o filho desta menina é este moço de luto.
Agora vire a página e olhe o anjo que ele possuiu,
veja esta mantilha sobre este ombro puro,
e estes olhos que parecem contemplar as nuvens
através da luneta avoenga. Veja que sem o fotógrafo
   [ querer
as cortinas dão a impressão de caras
   [ impressionantes
por detrás da gravura: um estudante de cavanhaque
   [ e outro de capa.
Repare bem o braço que ninguém sabe de onde
circunda o busto da moça e a quer levar para um
   [ lugar esconso.
Fixe bem o olhar com o ouvido à escuta para
   [ perceber a respiração grossa,
os gritos, os juramentos... A saia negra parece
   [ um sino de luto,
e o decote é a nau que a levou para sempre. E este
   [ fundo de água
pode ser o mar muito bem; mas pode ser as
   [ lágrimas do fotógrafo


 

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Carlos Machado, 2003

Poema extraído de:
•  Jorge de Lima
    Poesia Completa
   
Ed. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1997