Número 26

São Paulo, quarta-feira, 02 de julho de 2003 

«Viver não dói. O que dói/ é a vida que não se vive.» (Emílio Moura)
 


Antonio Brasileiro


Caros,

O poeta baiano Antonio Brasileiro (1944-) é discreto, muito arredio. "É verdade, forneço sempre poucos ou nenhuns dados sobre mim nos livros", escreveu-me ele, quando lhe pedi informações pessoais para este boletim.

Mas sua discrição, felizmente, aplica-se apenas ao campo pessoal. Em literatura, ele fala alto e para fora: professor universitário e editor, ele vem publicando poemas, ensaios, contos, romance, desde o final dos anos 60. Em breve, devem sair os seus Poemas Reunidos.

Para este boletim, pincei dois poemas de Antonio Brasileiro, ambos presentes em sua Antologia Poética, de 1996. O primeiro é "Estudo 208", um belo texto no qual o poeta discorre sobre o difícil diálogo com o leitor e a obrigação de dançar uma Valsa que a todos envolve.

Escrita nos anos 70, essa Valsa parece marcada pelo clima de repressão da época. O poeta, para se exprimir, sente necessidade de "valseá-la", o que equivale a destoar do compasso imposto pela música. Mas essa Valsa "sem memória" também pode ser entendida como algo maior, que está sempre nos afastando, poetas e leitores, da essência da poesia.

Interessante: Brasileiro publica a data de composição de cada um de seus poemas — uma ajuda fantástica para os estudiosos. É por isso que pude situar, sem receio, o "Estudo 208" nos anos 70. O outro poema, "Contemplação da Nuvem", é de 1988. Nele, o poeta mostra um lirismo filosófico, limpo e sem truques.


Um abraço,


Carlos Machado

 

Veja também sobre Antonio Brasileiro o boletim:
- poesia.net 293

A valsa sem memória

Antonio Brasileiro

 


ESTUDO 208

1.
A perfeição reside nos tumultos, nos
escombros, nas sinopses
de um homem —
                  perdoai,
amigos, estas diatribes:
a voz não diz o que desejo, é escasso
o raciocínio, não há livros
com os ensinamentos e os conselhos —
   perdoai,
amigos, meu linguajar de símbolos
tão velados

2.
           
:bailarinos inábeis
executando seus primeiros passos
num palco gigantesco (sem
   bordas)
   sem aplausos —
sós nós e uma valsa
sem memória
a ecoar (a ecoar a ecoar) por toda parte

e não há tempo para temer
e não há tempo para chorar:
   a        Valsa
não tem perdões, obriga-nos a valseá-la
   a        Valsa
não sabe nomes, envolve-nos nos braços
   a        Valsa
ela mesma não se chama Valsa —
perdoai, amigos, falar-vos nesta linguagem
há algo em mim que quer brotar com força:
            talvez um simples poema
            talvez (perdoai) apenas
esta vontade, imensa, de falar.

                                     
01/12/1979


CONTEMPLAÇÃO DA NUVEM

                            
 Para Luís Alberto

A vida é a contemplação daquela nuvem.
E o mundo
uma forma de passar, que inventamos
para não ver que o mundo não é o mundo,
mas uma nuvem
                               passando.

E uma nuvem passando
ensina-nos mais coisas que cem pássaros
mil livros            um milhão de homens.

A vida é a contemplação daquela nuvem.
E o mundo
uma forma de passar, que inventamos
para não ver que o mundo não é o mundo,
mas uma nuvem.
                               Passando.

                                      
15/02/1988
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

Antonio Brasileiro
•  In
Antologia Poética
    Fundação Casa de Jorge Amado/Copene,
    1996