Número 27

São Paulo, quarta-feira, 9 de julho de 2003 

«Há um tempo/ em que toda viagem é inútil.» (Donizete Galvão)
 

Bueno de Rivera
Bueno de Rivera


Caros amigos,

Esse mulato de gênio
lavou na pedra-sabão
todos os nossos pecados.


Com estes versos, Carlos Drummond de Andrade saudou Antonio Francisco Lisboa (1730?-1814), o Aleijadinho, seu conterrâneo mineiro que construiu igrejas em Ouro Preto, São João d'El Rei e Congonhas do Campo e as povoou com anjos, santos e profetas.

O Aleijadinho é também o tema do poeta desta semana. Bueno de Rivera era o nome artístico do mineiro Odorico Bueno (1911-1982). Publicou três livros de poesia: Mundo Submerso (1944); Luz do Pântano (1948); e Pasto de Pedra (1971).

Nos dois primeiros livros, observa-se no trabalho de Bueno uma dicção marcada pelo surrealismo. No terceiro, o poeta exibe poemas de corte mais formalista, influenciado pelas vanguardas (concretismo, práxis etc.).

O poema ao lado, "Aleijadinho: martírio e solidão", é desse último livro. Com versos enxutos e ritmados, Bueno de Rivera narra a saga do Aleijadinho. Segundo os relatos históricos, o artista das igrejas coloniais contraiu uma moléstia degenerativa que lhe foi carcomendo os membros: "Cai o dedo/ polegar/ no ar./ Cai o dedo/ indicador/ de dor." Esse escultor, arquiteto e desenhista que fez a glória do barroco mineiro morreu pobre e foi enterrado como indigente.

É essa a história que Bueno de Rivera retoma neste poema.

Excepcionalmente, neste boletim, não incluo uma foto do poeta: não a encontrei em nenhum lugar ao meu alcance.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado


 

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ADENDO EM 15/06/2008

Consegui, afinal, uma foto do poeta Bueno de Rivera, incluída no topo desta coluna.

Nova foto de Rivera. Em 01/03/2014.

O apocalipse do Aleijadinho

Bueno de Rivera

 


ALEIJADINHO: MARTÍRIO E SOLIDÃO


Profeta Ezequiel, em Congonhas do Campo (MG), escultura do AleijadinhoAnjo bruxo
anjo brusco
anjo tosco
anjo fosco
anjo fusco.

Corvo engaiolado
corvo depenado
corvo acorrentado
corvo torvo
estorvo.
                                              

Luporina?                                          
Cardina?                                             
Heroína?
Escorbuto?

Torto na liteira
torto na cadeira
torto na esteira
torto na poeira.

Cai o dedo
polegar
no ar.
Cai o dedo
indicador
de dor.
Cai o dedo
anular
no sal.
Cai o médio
sem remédio.
Cai o mínimo.
Caem todos
um a um.
Mãos
sem nenhum.

Pardo fardo
carregado
no ombro
no lombo.

Ó Januário
arma a tenda
do trabalho.

Vem cá Maurício,
amarra o formão
no cotó
da mão.

Talha
corta
sulca
vinca
finca
fende
entalha
bate forte
bate bate
rebate
toc-toc.

Com um toque
abre a cara
de Simão Stock.

De um golpe
cria o Jorge
sem cavalo
sem galope.

Surgem da pedra talhada
(e do nada)
barbas de Isaías
pés de Jeremias
túnicas de Amós
coturnos de Oséas
braços de Habacuc
ventre de Nahum
véus de Ezequiel
cabelos de Baruc
leão de Daniel
baleia de Jonas
queixos de Abdias
nariz de Joel.

Ouro preto
trevas
pentateuco
trevas
apocalipse
trevas
hora nona
trevas
agonia
trevas
miserere
trevas
miserere.

Frio e só
no jirau.

Morto e só.
Ninguém.

Nem o presidente
nem o intendente
nem o confessor.

Só.

Dobram sinos
batem sinos
choram alguém?

Dobram os sinos
do Pilar
— pelo notário
— pelo sicário.

Dobram os sinos
do Carmo
— pelo ricaço
— pelo devasso.

Dobram os sinos
das Mercês
— pelo ouvidor
— pelo marquês.

Dobram os sinos
choram os sinos
pelos Nobres blão
pelos Brancos blão

— pelo Aleijadinho N Ã O !
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

Bueno de Rivera
•  In Os Melhores Poemas
   
Seleção de Affonso Romano de Sant'Anna
   
Global Editora, São Paulo, 2003