Paulo Henriques Britto
Caros amigos,
O carioca Paulo Henriques Britto já foi apresentado neste boletim como tradutor
de Elizabeth Bishop (poesia.net
n. 39, de 01/10/2003). Agora é a vez de trazer o poeta com suas próprias
criações. Nascido em 1951, Britto é professor e já publicou quatro livros de
poesia: Liturgia da Matéria
(1982); Mínima Lírica (1989); Trovar Claro (1997); e Macau
(2003).
Em seus livros, ele desenvolve um trabalho poético em que combina o uso de
formas fixas (versos medidos, sonetos) com uma linguagem de registro coloquial.
Ao lado, dois momentos da poesia de Paulo Henriques Britto.
O primeiro vem de Macau, o livro mais recente. Trata-se da parte II do
bloco “Três Epifanias Triviais”. O que ressalta, aí, é a habilidade do poeta de
fazer uma reflexão grave, quase filosófica, sem abrir mão da ironia e do tom
coloquial. Observe que, brasileiramente, a pessoa a quem o texto se dirige ora é
você, ora é tu.
O outro texto é um poema diante do espelho, extraído do livro Trovar Claro.
A ironia é a mesma, mas o humor e o coloquialismo, aqui, sobem mais alguns
pontos e atingem o ápice no final. Em ambos os poemas destaca-se também uma
forte aderência aos temas do cotidiano. Mesmo quando as idéias se deslocam para
um diapasão mais alto, o ponto de partida é quase sempre um fato comum — uma
epifania trivial, para usar uma expressão do poeta.
Um abraço,
Carlos Machado
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As coisas que nos cercam
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Paulo Henriques Britto |
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Andrew Atroshenko, pintor russo, Elena
DE “TRÊS EPIFANIAS TRIVIAIS”
II
As coisas que te cercam, até onde
alcança tua vista, tão passivas
em sua opacidade, que te impedem
de enxergar o (inexistente) horizonte,
que justamente por não serem vivas
se prestam para tudo, e nunca pedem
nem mesmo uma migalha de atenção,
essas coisas que você usa e esquece
assim que larga na primeira mesa —
pois bem: elas vão ficar. Você, não.
Tudo que pensa passa. Permanece
a alvenaria do mundo, o que pesa.
O mais é enchimento, e se consome.
As tais Formas eternas, as Idéias,
e a mente que as inventa, acabam em pó,
e delas ficam, quando muito, os nomes.
Muita louça ainda resta de Pompéia,
mas lábios que a tocaram, nem um só.
As testemunhas cegas da existência,
sempre a te olhar sem que você se importe,
vão assistir sem compaixão nem ânsia,
com a mais absoluta indiferença,
quando chegar a hora, a tua morte.
(Não que isso tenha a mínima importância.)
Andrew Atroshenko, Beleza pura
“ESSE ROSTO QUE ME
OLHA”
Esse rosto que me olha de esguelha
(talvez para não ser reconhecido)
não é o mesmo que ontem vi no espelho,
o rosto familiar de um velho amigo
que desde sempre eu via à minha frente
e que no entanto agora anda sumido.
Não. Este novo é um rosto diferente,
de quem está ali a contragosto,
só por honra da firma, e se ressente
da obrigação de refletir um rosto
que — fora um ou outro aspecto físico
que nada significa — é o seu oposto.
(Um dos dois rostos é um impostor, no mínimo.
Um dos dois vai ouvir: Pára com isso,
porra. É com você mesmo, seu cínico.)
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