Número 39

São Paulo, quarta-feira, 01 de outubro de 2003 

«Alma, és só tempo e solidão.» (Emílio Moura)
 


Elizabeth Bishop


Caros,

"Cadela Rosada" (Pink Dog) é um dos últimos poemas de Elizabeth Bishop (1911-1979), uma americana com fortes ligações com o Brasil. Viveu aqui, no Rio de Janeiro e em Ouro Preto, e traduziu para o inglês poemas de Carlos Drummond, João Cabral e Vinícius de Moraes. Bishop é, também, um dos nomes mais importantes da moderna poesia americana.

Embora concluído em 1979, "Cadela Rosada" começou a ser escrito muitos anos antes. Refere-se a um episódio famoso, de 1962, quando se denunciou que mendigos cariocas estariam sendo assassinados pelo Esquadrão da Morte, que lançava os cadáveres no rio da Guarda.

Elizabeth Bishop identifica a cadela rosada com um mendigo. E pergunta: se estão fazendo isso com seres humanos, o que não farão com uma pobre cadela sarnenta? Mas é interessante também fazer outra leitura: em inglês, bitch (cadela) é, também, prostituta. Então, muitos analistas vêem nesse animal uma metáfora da condição feminina.

Para esses analistas, é a mulher pobre, sozinha, com filhos, sem um lar constituído. Portanto, um ser fora dos padrões, acometido de sarna moral, aos olhos da distinta sociedade. "Quem a vê até troca de calçada".

Deve-se destacar, aqui, a excelente versão do poeta Paulo Henriques Britto. Observe que, traduzindo para brasileiros, ele introduz coisas que não estão no texto original. Elizabeth Bishop, genérica, diz que os cadáveres são jogados "in the tidal rivers". Paulo Henriques, carioca, dá a informação precisa: "lançados no rio da Guarda".

Outra criativa licença tradutória está no final do poema, quando aparece o "A-lá-lá-ô". Elizabeth apenas manda vestir a fantasia: Dress up! Dress up and dance at Carnival! Mas a tradução, ao trair o original, é fidelíssima: afinal, o primeiro verso do poema avisa: "Sol forte, céu azul. O rio sua".  Mas que calor ô ô ô ô ô ô...

Um abraço,

Carlos Machado



 

Uma cadela no Carnaval

Elizabeth Bishop

 




CADELA ROSADA

                         [Rio de Janeiro]

Sol forte, céu azul. O Rio sua.
Praia apinhada de barracas. Nua,
passo apressado, você cruza a rua.

Nunca vi um cão tão nu, tão sem nada,
sem pêlo, pele tão avermelhada...
Quem a vê até troca de calçada.

Têm medo da raiva. Mas isso não
é hidrofobia
é sarna. O olhar é são
e esperto. E os seus filhotes, onde estão?

(Tetas cheias de leite.) Em que favela
você os escondeu, em que ruela,
pra viver sua vida de cadela?

Você não sabia? Deu no jornal:
pra resolver o problema social,
estão jogando os mendigos num canal.

E não são só pedintes os lançados
no rio da Guarda: idiotas, aleijados,
vagabundos, alcoólatras, drogados.

Se fazem isso com gente, os estúpidos,
com pernetas ou bípedes, sem escrúpulos,
o que não fariam com um quadrúpede?

A piada mais contada hoje em dia
é que os mendigos, em vez de comida,
andam comprando bóias salva-vidas.

Você, no estado em que está, com esses peitos,
jogada no rio, afundava feito
parafuso. Falando sério, o jeito

mesmo é vestir alguma fantasia.
Não dá pra você ficar por aí à
toa com essa cara. Você devia

pôr uma máscara qualquer. Que tal?
Até a quarta-feira, é Carnaval!
Dance um samba! Abaixo o baixo-astral!

Dizem que o Carnaval está acabando,
culpa do rádio, dos americanos...
Dizem a mesma bobagem todo ano.

O Carnaval está cada vez melhor!
Agora, um cão pelado é mesmo um horror...
Vamos, se fantasie! A-lá-lá-ô...!

1979


 

PINK DOG
                        
                         [Rio de Janeiro]

The sun is blazing and the sky is blue.
Umbrellas clothe the beach in every hue.
Naked, you trot across the avenue.

Oh, never have I seen a dog so bare!
Naked and pink, without a single hair...
Startled, the passersby draw back and stare.

Of course they're mortally afraid of rabies.
You are not mad; you have a case of scabies
but look intelligent. Where are your babies?

(A nursing mother, by those hanging teats.)
In what slum have you hidden them, poor bitch,
while you go begging, living by your wits?

Didn't you know? It's been in all the papers,
to solve this problem, how they deal with beggars?
They take and throw them in the tidal rivers.

Yes, idiots, paralytics, parasites
go bobbing int the ebbing sewage, nights
out in the suburbs, where there are no lights.

If they do this to anyone who begs,
drugged, drunk, or sober, with or without legs,
what would they do to sick, four-legged dogs?

In the cafés and on the sidewalk corners
the joke is going round that all the beggars
who can afford them now wear life preservers.

In your condition you would not be able
even to float, much less to dog-paddle.
Now look, the practical, the sensible

solution is to wear a
fantasía.
Tonight you simply can't afford to be a-
n eyesore... But no one will ever see a

dog in
máscara this time of year.
Ash Wednesday'll come but Carnival is here.
What sambas can you dance? What will you wear?

They say that Carnival's degenerating
radios, Americans, or something,
have ruined it completely. They're just talking.

Carnival is always wonderful!
A depilated dog would not look well.
Dress up! Dress up and dance at Carnival!

1979

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

Poema extraído de:
•  Elizabeth Bishop
    O Iceberg Imaginário e Outros Poemas
    Seleção, tradução e estudo crítico de
    Paulo Henriques Britto
    Companhia das Letras, São Paulo, 2001