Número 494 - Ano 20

Salvador, quarta-feira, 7 de setembro de 2022

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«Porque os corpos se entendem, mas as almas não.» (Manuel Bandeira) *

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Ruy Espinheira Filho
Ruy Espinheira Filho



Amigas e amigos,

O autor em foco nesta edição é o poeta, romancista e cronista  baiano Ruy Espinheira Filho (Salvador, 1942), que já esteve nesta página em várias outras ocasiões. Desta vez, ele vem trazido pelo livro Sonetos Reunidos & Inéditos [1975-2020] (Patuá, 2020).

Destacado praticante do soneto, Espinheira sempre inclui poemas desse formato em suas coletâneas poéticas. Nesta reunião, estão compilados 103 poemas já publicados em livros anteriores, mais 11 inéditos. Com essa extensa coleção de sonetos, o poeta inclui-se, sem favor, entre os mais destacados cultores desse artefato poético na atualidade.

Preocupado em oferecer ao leitor pistas precisas sobre a composição dos poemas, Espinheira informa claramente de qual livro foi extraído cada soneto e ainda o período temporal em que cada bloco de poemas foi escrito.

Para esta edição, selecionei meia dúzia dos sonetos reunidos de Ruy Espinheira Filho. Tive também o cuidado de não escolher textos já publicados aqui em edições anteriores do boletim. Vamos a eles.

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“Soneto da permanência”, do livro Morte Secreta e Poesia Anterior (1975/1984), é um poema de saudades da adolescência. Um texto que se coloca entre os muitos que já valeram ao autor o título de “poeta da memória”. Do ponto de vista formal, este soneto, vazado em decassílabos, abre mão das rimas sem nada perder em sua força lírica. Afinal de contas, não é todo dia que a gente tem a oportunidade de encontrar por aí uma expressão como “um vento encrespado de remorsos”.

No poema seguinte, “Soneto da luz de maio”, o poeta evoca o célebre soneto quinhentista de Sá de Miranda (“O sol é grande”) e extasia-se com a luminosidade do dia: “desce a luz como um riso, uma alegria/ e vem ecoar nas pedras da varanda”.

“Soneto do sono” é um exemplo de poema que, nas rimas, foge ao padrão convencional. Aqui, os quartetos são rimados no esquema abba cbbc, com repetição das palavras rimantes nos versos b. Diferentemente, os tercetos não incluem rimas.

O “Soneto do sino e do tempo” também deixa de lado o padrão rímico. Nos quartetos, não há rima. Nos tercetos (nos versos 2, 4 e 6), sim: “meninos”, “destinos” e “sino”. Agora, proponho ao leitor um exercício: leia em voz alta este soneto, que começa com esta preciosidade: “Ouvir um sino é como abrir o tempo”. E que tempo é esse? “O tempo nítido de uma cidade/ ornada de andorinhas e silêncio”. Se o poeta parasse aí, o poema já estaria pronto. Não o soneto, decerto, mas um textinho carregado de lirismo e encantamento. Prossiga, e há ainda muito mais até o décimo quarto verso.

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No doído “Soneto das mesas”, o sujeito lírico convoca irmãos, pai, mãe e amigos, todos já mortos, para uma reunião (almoço? jantar?) em torno de uma mesa. A intenção é reviver as alegrias.

No poema seguinte — o último de nossa miniantologia —, “Soneto do amigo morto”, o clima é similar. Desta vez, porém, é o amigo quem faz as honras da casa, serve o vinho e mostra toda a sua alegria. Mais uma vez, o esquema de rimas é engenhoso: todos os 14 versos rimam, mas existem apenas duas palavras rimantes: “morto”, o amigo, e “Porto”, o vinho. Emocionante.

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Ruy Espinheira Filho nasceu em Salvador (1942-), mas passou boa parte da infância e da adolescência em cidades do interior da Bahia. É professor aposentado da UFBA, onde atuou nas áreas de comunicação e letras. Estreou em 1973 com o livro Poemas, publicado em parceria com outro destacado poeta baiano, Antonio Brasileiro. De lá para cá, já lançou dezenas de títulos, entre poesia, ficção em prosa, crônicas e textos para crianças.

Entre as reuniões e antologias de sua poesia destacam-se Poesia Reunida e Inéditos (Record, 2ª ed., 1998); Melhores Poemas (Global, 2011); Estação Infinita e Outras Estações (Bertrand Brasil, 2012); e Nova Antologia Poética (Patuá, 2018); e Sonetos Reunidos & Inéditos (Patuá, 2020). O poeta Ruy Espinheira Filho já esteve aqui no poesia.​net em outras edições: número 429 (2019); número 378 (2017); número 284 (2012); e número 18 (2003).


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MAIS SOBRE O SONETO

Estima-se que o soneto foi criado na Sicília, no início do século XIII, como uma espécie de letra escrita para música. O artefato poético evoluiu, e o frade toscano Guittone d’Arezzo (c.1235-1294) tornou-se o primeiro a adotar o formato que afinal foi praticado por nomes ultraconhecidos como Francesco Petrarca (1304-1374) e Dante Alighieri (1265-1321). Petrarca destacou-se como aperfeiçoador da estrutura do soneto e também como seu divulgador por toda a Europa. Somente ele escreveu 317 sonetos.

Em linhas gerais, o soneto clássico consiste num poema de 14 versos, dividido em quatro estrofes, dois quartetos e dois tercetos. Os esquemas de métrica e rima variam com o tempo e a criatividade dos poetas. O decassílabo é, com certeza, o metro mais usado na confecção de sonetos, embora autores como Cassiano Ricardo tenham escrito sonetos com versos de uma única sílaba. Há também os sonetos sem rima, o soneto inglês (três quadras mais um dístico) e até os sonetos bárbaros (sem métrica e sem rima, obedecendo apenas à regra dos 14 versos).

Em língua portuguesa, o soneto conquistou brilho especial na pena do poeta-maior Luís Vaz de Camões (1524-1579), autor de clássicos que já resistem há quase 500 anos. No Brasil, o artefato italiano tem sido cultivado por muitos poetas, com destaque para o parnasiano Olavo Bilac, o simbolista Alphonsus de Guimaraens, chegando até os modernistas Alphonsus de Guimaraens Filho, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Mario Quintana e muitos outros.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Sonetos à mancheia


• Ruy Espinheira Filho


              



Adilson Santos - Rosto-2012
Adilson Santos, pintor baiano, Rosto (2012)


SONETO DA PERMANÊNCIA

Esta saudade bate no meu peito
como um vento encrespado de remorsos,
tardes mansas, manhãs iluminadas,
meigos seios nascentes, bicicletas

em torno do jardim. Esta saudade
queima e me embriaga. E bebo mais.
E bebo tudo e já não resta nada
no universo a não ser a embriaguez

desta saudade. E eis que me sinto absinto
e não me encontro em mim. Estarei morto?
Não estou morto: estou é lá, aqui

na distância, no centro deste parque
que gira e gira o mundo. Aí estou
e fico imóvel neste carrossel.

        De Morte Secreta e Poesia Anterior (1975/1984)


SONETO DA LUZ DE MAIO

        a Állex Leilla


Neste maio que finda, o sol é grande
como em Sá de Miranda. Do alto dia
desce a luz como um riso, uma alegria
e vem ecoar nas pedras da varanda.

E até em mim ecoa essa alegria!
Mesmo em mim, que já a última esperança
de cor e luz deixara ir-se na dança
das chuvas, dos trovões, da ventania.

Vem ecoar em mim e me conduz
para a vida, de novo, e para a calma
que desce dela mesma, dessa luz

que pousa sobre tudo e tudo acalma
neste maio que finda e que reluz
nas pedras da varanda e em minha alma.

        De Elegia de Agosto e Outros Poemas (1996-2005)



Adilson Santos - Menina segurando o cabelo
Adilson Santos, Menina segurando o cabelo


SONETO DO SONO

A tarde é tão serena que parece
vir do hálito que sobe do teu sono.
Vejo-te a ir nas nuvens do abandono,
comovido de calma. A tarde desce

ao longe, sobre o mar. Mas lenta e leve,
que assim a exala o sonho desse sono.
E tudo, enfim, é o sopro do abandono,
como o seu sussurrar na mão que escreve.

Dormes como num voo. Como se fosse
quando o tempo era jovem. E me sinto
pleno de mar e luz e céu — e sou

soberbo e claro por estar absorto
no abandono desse pó de estrelas
que se juntou para inventar teu corpo.

        De Elegia de Agosto e Outros Poemas (1996/2005)


SONETO DO SINO E DO TEMPO

Ouvir um sino é como abrir o tempo.
O tempo nítido de uma cidade
ornada de andorinhas e silêncio.
Um tempo que se estende desde o alto

das casuarinas às vagas colinas
em que morre o horizonte e onde um tesouro
de esperanças oferta-se em caminhos
vastos de amores, glórias, ilhas de ouro.

Respirar esse tempo é azul e calma
sobre quintais, varandas, cães, meninos
e meninas serenas e de tranças,

e sonhos de distâncias e destinos
em nós adormecidos e acordados
por esse dia aberto à luz de um sino.

        De Sob o Céu de Samarcanda (2005/2009)



Adilson Santos - Menina segurando alguma coisa-2012
Adilson Santos, Menina segurando alguma coisa (2012)


SONETO DAS MESAS

Convido os irmãos mortos para a mesa.
E mais o pai. E a mãe. E amigos tantos.
Não para reviver coisas de prantos,
pois horas dolorosas nesta mesa

não podem ter lugar. Tem a certeza
do amor com que bordamos nossos mantos
de dias já cumpridos e outros tantos
que são dos reunidos nesta mesa.

Os que se foram, eis que não se foram
de vez. E sempre vêm — quando os convido
ou não convido — jovens, sem tristeza.

Pai, mãe, irmãos, grandes amigos... Douram-me
a alma — enquanto aguardo, comovido,
minha vez de sentar-me à sua mesa.

        De Milênios e Outros Poemas (2015/2016)


SONETO DO AMIGO MORTO

        A Mário Vieira da Silva, in memoriam


Abre o vinho e nos serve, o amigo morto,
e brindamos com doce alma de Porto.
Rico de vinhos, sempre, o amigo morto:
da Argentina, do Chile, França e Porto.

Tão jovem que ele está!... Bebo do Porto,
fitando com ternura o amigo morto.
Corado, alegre, o claro amigo morto
presta homenagens às marés do Porto.

Um cálice, e outro, e outro... O amigo morto
segue em viagem aos portos que há no Porto.
Tão bem vai navegando, o amigo morto,

que sorrio, admirando-o porto a porto,
perguntando-me, à luz da alma do Porto,
se acaso não sou eu o amigo morto...




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2022


Foto: Mario Espinheira


Ruy Espinheira Filho
      •  Todos os poemas:
      in Sonetos reunidos & inéditos (1975-2020)
      Prefácios de André Seffrin e Miguel Sanches Neto
      Patuá, São Paulo, 2020
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* Manuel Bandeira, “Arte de Amar”, in Belo Belo (1948)
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* Imagens: quadros do pintor baiano Adilson Santos (1944-)