Número 508 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 10 de maio de 2023

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«A sombra do berço traça na parede / uma gaiola enorme.» (Elizabeth Bishop) *

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Paulo Ferraz
Paulo Ferraz



Amigas e amigos,

O poeta mato-grossense Paulo Ferraz (Rondonópolis, 1974) é conhecido dos leitores do poesia.​net. Ele já esteve aqui nas edições n. 227 (de 2007) e n. 41 (de 2003, no primeiro ano do boletim). Cada uma dessas edições reflete, se não exatamente a data de lançamento, a presença de um ou mais livros do poeta nesse período. Consideradas as datas, pode-se pensar que o autor escreve pouco ou quase tende a ser um poeta bissexto. Não é verdade, e eu mesmo sou testemunha disso.

Ao longo dos últimos anos, em reuniões informais com amigos ou eventos dedicados à poesia, vi várias vezes Paulo Ferraz mostrar novos poemas, alguns ainda em pleno processo de criação. Então vem a pergunta: por que, aparentemente, ele publica pouco? Acontece que Ferraz é, em primeiro lugar, um poeta de projeto. Meticuloso, ele define rumos e os persegue tenazmente. Nesse aspecto, não se pode dizer que seja um poeta da precipitação ou do improviso.

Lançado no segundo semestre de 2018, Vícios de Imanência (Dobradura/Selo Sebastião Grifo), seu livro mais recente, constitui uma prova disso. Trata-se de uma coletânea que contém várias linhas de força, essencialmente voltadas para o cotidiano.

A esse propósito, o poeta Tarso de Melo observa, na orelha do livro: “Aliás, a poesia de Paulo Ferraz nunca foi uma poesia de dentro de casa. Pelo contrário, os espaços de sua poesia sempre foram fraturados: o cotidiano rasgado pela História, a casa rasgada pela rua, a vida rasgada pela morte”.

Coerente com esse “cotidiano rasgado pela História”, um dos eixos de Vícios de Imanência situa-se na série “Para Não Esquecer”, que abriga doze poemas numerados. São ecos da ditadura militar de 1964-1985, esse período tenebroso do qual até agora sofremos os danosos resquícios.

•o•

O primeiro poema de nossa miniantologia vem exatamente da série “Para Não Esquecer”, o texto n. 3. Observe-se que, ao contrário da prática comum, o poema traz uma antidedicatória: “Contra Erasmo Dias”. Se aí entre os leitores houver quem não saiba, ou não lembre, esse Erasmo Dias (1924-2010), coronel, foi secretário de Segurança de SP. Entre seus feitos truculentos, comandou a invasão da PUC-SP em 1977, quando cerca de 3.000 policiais espancaram, queimaram com bombas de gás e prenderam cerca de 900 pessoas. Para saber mais, procure “invasão da PUC 1977” no YouTube e/ou no Google.

Em “Para Não Esquecer Nº 3”, um personagem, ex-torturador, já velho, conta aos netos, entre carícias, o que fazia com os opositores da ditadura que lhe caíam nas mãos: “o vovô só lhes / dava um cascudo, um tantinho / de educação”. Que a deusa da democracia nos proteja desse tipo de “educador”.

O poema seguinte, “Resistência dos Materiais”, mostra que todo o conhecimento sobre a robustez dos ossos humanos é inútil diante da brutalidade das botas de um policial. Aqui a violência não tem, diretamente um viés político, mas social: é contra os pobres, como lembra o verso “no beco, no mato”.

Outro prócer da ditadura militar, o coronel Jarbas Passarinho (1920-2016), é anti-homenageado no pequeno epigrama “Às Favas”. Como se sabe, em 1968, na reunião para decidir sobre o AI-5, que implantou o arbítrio total no país, Passarinho, então ministro da Educação, disse: “Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência”. Em outras palavras, o que vamos fazer é criminoso, mas deixemos de lado essa bobagem de consciência.

•o•

Agora, com o poema “Proposta”, o diapasão poético de Paulo Ferraz se ajusta a um tom lírico-amoroso. Contudo, artista que foge do lugar-comum como o diabo da cruz, Ferraz não escorrega em terreno melífluo. De alguma lição de anatomia ele toma por empréstimo as quatro cavidades do coração (dois átrios, dois ventrículos) e as compara a uma casa. E assim compõe uma originalíssima declaração de amor.

O texto seguinte é “Poética”, um metapoema. Aqui a elaboração de um poema é comparada à construção de um edifício, vista pelo lado estrutural — portanto, uma obra de engenharia. Mas, curiosamente, a conclusão diz que, a rigor, não há similaridade entre um poema e um prédio de apartamentos.

O autor certamente pensa no quanto se escreve, reescreve e desescreve num poema. E também no quanto se quer dizer e, por mil e uma injunções, afinal não diz. É por isso que, para ele, o poema é “uma ruína arqueológica”. O que chega ao leitor são apenas os restos do que um dia, no papel, num arquivo digital ou na mente do poeta, foi (ou tentou ser) um vigoroso monumento.

O último texto de nossa miniantologia é “Poema-bomba”, também dedicado à reflexão sobre o ato de escrever. Neste caso, destaca-se o contraste entre a imaginação do autor sobre o destino de seu poema e sua verdadeira realidade.

•o•

Paulo Ferraz (Rondonópolis-MT, 1974) é poeta, tradutor e editor. É graduado em Direito e em História pela Universidade de São Paulo, onte também concluiu o mestrado em Teoria Literária.

Estreou em poesia com o livro Constatação do Óbvio (Selo Sebastião Grifo, 1999). Em 2007, lançou dois títulos, também pelo selo Sebastião Grifo: Evidências Pedestres e De novo nada. Este último, que contém um poema único de quase 600 versos, foi adaptado para o teatro por Helder Mariani e levado ao palco no projeto Poetas em Cena. Em 2011, com o título De Nuevo Nada, esse livro foi publicado no México por Mantis Editorial e em 2014 no Equador por El Quirófano Ediciones.

A coletânea Vícios de Imanência (Dobradura/Selo Sebastião Grifo, 2018), em foco neste boletim, foi uma das obras semifininalistas do Prêmio Oceanos de 2019.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Espaços fraturados

• Paulo Ferraz


              



Bela de Kristo - Le musicien
Bela de Kristo, pintor húngaro, O músico


PARA NÃO ESQUECER N° 3

    contra Erasmo Dias

Com essa sacava o 38,
tinha sempre seis projéteis
ungidos em sacros óleos
pelo arcebispo; com aquela
manejava o cassetete
como quem brinca de espada —
lembrança da criança antiga
que surrara os empregados,
o avô contara que o mesmo
dava aos pretos: um tantinho
de educação. São as mesmas
mãos frágeis que hoje só sabem
afetos, as mesmas mãos que
viris asfixiavam, hoje a-
lisam cabelos (as mesmas
mãos — basta que seus netinhos
escarafunchem nos vãos dos
dedos, debaixo das unhas,
ali descobrirão sangue
gravado que a senectude
não apaga). Não se assustem,
meninos, o vovô só lhes
dava um cascudo, um tantinho
de educação. Pronto, agora
todo mundo pra caminha.



Bela de Kristo - Nature morte Macon 57
Bela de Kristo, Natureza-morta Macon 57 (c.1917)


RESISTÊNCIA DOS MATERIAIS

Em testes de laboratório,
chegou-se à conclusão de
que o ponto de ruptura
de uma massa óssea
— aferido no ensaio padrão —
é de 300 kgf/cm², em
razão do comportamento
dúctil do cálcio quando
associado ao colágeno.

Já na jaula da polícia,
no beco, no mato,
não é necessário recorrer
a nenhum instrumento
de precisão, basta
o coturno do soldado.


ÀS FAVAS

Esse Passarinho
fez muitos homens morrerem
em gaiolas



Bela de Kristo - Le chef d'orchestre-1949
Bela de Kristo, O maestro (1949)


PROPOSTA

De somente quatro
cômodos disponho
(todos temos quatro) e
são todos seus para
que neles habite e
faça sua morada
permanente. Tome as
chaves. Aqui dois os
átrios, justos para
sala e biblioteca,
pouco mais abaixo
também dois ventrículos,
num a cozinha,
faça do outro o quarto.
Eis, traga a mudança
logo, que o caminho
você tem de cor.


POÉTICA

A harmonia é indispensável ao
edifício (ainda que não seja simétrico.
ao final os vetores direcionam as cargas
para pontos que absorvem toda a força e
a dissipam pelas fundações na profundeza
do solo onde este cede lugar à rocha),
sem ela, tudo que fora planejado
não ficaria de pé. Mas a poesia não é um
prédio de apartamentos, é antes
uma ruína arqueológica, lemos apenas
a parte que sobreviveu, velhas paredes,
velhos alicerces, talvez uma janela
do que chamamos poema.Tudo o mais
devemos nós mesmos reconstruir.



Bela de Kristo - femme.a.lacoiffeur-avec.le.chat.jpg
Bela de Kristo, Mulher penteando-se e gato


POEMA-BOMBA

Projeto o poema como
um artefato explosivo;
um composto de imagens
que uma vez detonado
despedace o edifício
de ignorância que grassa.

Projeto o poema como
um coquetel molotov
— palavras de guerrilha —
que possa ser lançado
contra os escudos moucos
do meio da multidão.

Projeto o poema como
uma bomba de frag-
mentação, armamento
ardiloso que ao incauto
alcance sem pedir li-
cença, ferindo a alma.

Projeto o poema como
um cogumelo atômico
capaz de cruzar mares
e se fundir a outros
códigos com sua radioa-
tividade perene.

Mas ao fim o que explode, ou-
vido só por amigos,
vale sequer um traque.




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www.algumapoesia.com.br
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Carlos Machado, 2023



• Paulo Ferraz
   in Vícios de Imanência
   Dobradura/Selo Sebastião Grifo, São Paulo, 2018
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* Elizabeth Bishop, "Canções para uma cantora de cor",
 in Poemas Escolhidos de Elizabeth Bishop,
 trad. Paulo Henriques Britto
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* Imagens: obras de Bela de Kristo (1920-2006), pintor húngaro.