Número 509 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 24 de maio de 2023

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«O que esperais de um Deus? / Ele espera dos homens que O mantenham vivo.» (Hilda Hilst) *

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Assis Lima
Assis Lima



Amigas e amigos,

Médico psiquiatra, poeta e premiado pesquisador em cultura popular, Francisco Assis de Sousa Lima, ou simplesmente Assis Lima, é cearense (Crato,1949) e reside em São Paulo. Publicou os livros de poesia Breviário (2022); O Código Íntimo das Coisas (2018); Poemas de Riso e Siso (2017); Terras de Aluvião (2016); Marco Misterioso (2015); Chão e Sonho (2011); e Poemas Arcanos (2008).

Nesta edição, apresento poemas extraídos das duas coletâneas mais recentes de Assis Lima, Breviário e O Código Íntimo das Coisas, ambas publicadas pela editora carioca Confraria do Vento.

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O primeiro poema da minisseleta ao lado é “In Extremis”. Nele, conforme o título indica, o poeta trata do momento da morte. Em “Super Star”, o tom de consternação dá lugar à observação chistosa tratando-se da biografia de um personagem famoso.

Em “Foto para o Perfil”, o poeta volta para si mesmo sua máquina de ironia, após lhe ser confiada uma difícil tarefa: fazer uma pose adequada para sair bem numa fotografia para seu perfil. Acompanhe o texto e veja como se sai o poeta — pelo jeito, alguém pouco à vontade no ofício de fazer caras e bocas. Dou apenas notícia de uma primeira tentativa: “Ousei experimentar algumas selfies,/ com o cuidado narcisista/ de não contrair o rosto/ nem fechar o riso”.

No poema seguinte, “Ausência”, a tonalidade lírica volta a ser mais circunspecta. Nesse texto, o narrador visita um lugar onde um dia existia a casa de alguém muito próximo ou, quem sabe, uma casa antiga do próprio narrador. A dúvida vem da primeira palavra: “Partiste, / e o pouco que restou/ dos torrões da tua casa de taipa,/ esfarelo nas mãos”. Partir pode indicar “foste embora” (uma referência à própria pessoa que fala) ou “morreste” (uma pessoa querida).

Nos últimos versos, a memória do eu lírico lhe traz uma visão e ele reage: “Quem vem lá?/ Serás tu ou sou eu?”. Essas interrogações abrem espaço para as duas hipóteses levantadas no parágrafo anterior. E o próprio narrador reforça a confusão, ao afirmar: “Tanto faz”.

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Até aqui, os quatro poemas citados foram todos extraídos do livro O Código Íntimo das Coisas (2018). Os dois poemas a seguir vêm de Breviário, a coletânea mais nova de Assis Lima, publicada em 2022.

Em “Chuva Meteórica”, o autor inicia o discurso lembrando o conhecido pensamento de Heráclito: “Antes/ que o vento agreste/ encrespe o mar,/ marcarei lembranças,/ guardarei paisagens,/ pois nunca se volta/ ao mesmíssimo lugar.” Neste poema cheio de música, celebra-se a vida com a certeza de que, apesar de todos os pesares, “De ouro é o dia/ de prata, o luar”.

Em “Vidas”, o último poema da miniantologia ao lado, o poeta retorna à ironia. “Há consenso entre especialistas/ de que em vidas passadas/ fui frade e padre”. Com base nessa afirmação de “especialistas”, o poeta termina o texto com uma pergunta cheia de ceticismo.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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O MELHOR DA POESIA DE LÁ

TheBest-2023“O melhor da poesia americana (e o pior da brasileira)”. Este é o título de um artigo meu no blog da Balaio Editorial, empresa que publicou há um mês meu livro de poemas Cicatrizes. O texto compara a circulação de poesia nos Estados Unidos e aqui.


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O código íntimo das coisas

• Assis Lima


              



George Telfer Bear - 2006-02
George Telfer Bear, pintor escocês, Moça com leque (1931)


IN EXTREMIS

      A Lucila Freitas

Depois de longa estiagem,
caía a chuva
e pingavam versos.
Eram versos extremos.

Diz a lenda
que no extremo da morte
cada um aparecerá a si mesmo
como verdadeiramente é:
desnudo,
sem máscara
ou persona.

Reatualiza-se
o susto de nascer.


SUPER STAR

O grande astro teve sua vida esmiuçada
e publicada em livro.

O biógrafo foi seco no perfil:
rancoroso,
inseguro,
avarento,
cruel,
medroso.

Enfim a celebridade
ganha cara de gente.




George Telfer Bear - george-telfer-bear-portrait.with.still.life-1973
George Telfer Bear, Retrato com natureza-morta (1973)


FOTO PARA O PERFIL

Um amigo sugeriu-me a substituição
           da minha foto para o perfil,
pois na atual eu aparecia um pouco arreado,
o que não condiz com o meu momento.
Considerando que um dos meus grandes
            imperativos existenciais
é conseguir ficar bem na foto,
decidi trocá-la.
O problema é que levo muito a sério ser fotografado,
e a pose me trai.

Ousei experimentar algumas selfies,
com o cuidado narcisista
de não contrair o rosto
nem fechar o riso.

Na fina apreciação do meu consultor,
dei sorte com a foto:
“ar senhoril,
um leve sorriso apenas insinuado,
o olhar firme mas não rígido,
a linda rede a lembrar sua origem sertaneja”...

Enfim, uma foto quase “armorial”.

Uma seguidora curtiu,
sem me poupar:
“Estás bonito com esse cabelo,
ficou mais novo.
Parece até alma querendo reza”...


AUSÊNCIA

Partiste,
e o pouco que restou
dos torrões da tua casa de taipa,
esfarelo nas mãos.

Um tijolo sobrou talvez
como remoto símbolo
da fé que te animava,
arcabouço de alvenaria.

Os dias se sucedem
em ciclagem rápida.
Muro alto, fosso,
cinzas.

Quem vem lá?
Serás tu ou sou eu?
(Tanto faz, eu diria).
Sigo a pé rebocando
o remoto horizonte da paisagem fria.




George Telfer Bear - george.telfer.bear-the-red-hat
George Telfer Bear, Chapéu vermelho


CHUVA METEÓRICA

Antes
que o vento agreste
encrespe o mar,
marcarei lembranças,
guardarei paisagens,
pois nunca se volta
ao mesmíssimo lugar.

Antes
que o hálito vulcânico
desça sobre o mar,
mergulharei deltas
de um profundo rio,
que uma vez passado
não torna a passar.

Antes
que um último assobio
chame o vento solar,
vestirei o manto
do lençol da noite:
que para além do açoite
vem arrebatar.

Por ora,
um banho de chuva,
passeio na mata,
canoa no rio,
barquinha no mar.
De ouro é o dia,
de prata, o luar.


VIDAS

Há consenso entre especialistas
de que em vidas passadas
fui frade e padre.

Nada contra, embora entenda
que mesmo as vidas passadas
acontecem no presente.

Mas, vindo ao que interessa
agora e aqui:
onde foi parar o meu latim?



poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
facebook.com/avepoesia
instagram.com/cmachado.poesia
Carlos Machado, 2023



• Assis Lima
   "In extremis", "Super star", "Foto para o perfil", "Ausência"
   in O código íntimo das coisas
   Confraria do Vento, Rio de Janeiro, 2018

   "Chuva meteórica", "Vidas"
   in Breviário
   Confraria do Vento, Rio de Janeiro, 2022
_____________
* Hilda Hilst, "Passeio", in Exercícios (2002)
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* Imagens: obras de George Telfer Bear (1955-2014), pintor escocês.