Número 516 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 13 de setembro de 2023

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«Calo-me, espero, decifro. / As coisas talvez melhorem. / São tão fortes as coisas! // Mas eu não sou as coisas e me revolto.» (Drummond) *

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Donizete Galvão
Donizete Galvão


Amigas e amigos,

Autor já conhecido aqui no poesia.​net, o poeta mineiro Donizete Galvão (1955-2014) retorna mais uma vez a esta página, agora trazido por um fato há muito esperado: o lançamento de sua Poesia Reunida, que sai este mês pela editora Círculo de Poemas.

A organização do volume, que contém todos os nove livros publicados por Donizete Galvão, esteve a cargo dos poetas Tarso de Melo e Paulo Ferraz, amigos pessoais do autor e conhecedores de longa data de sua obra. Para completar a edição, Melo e Ferraz convocaram dois professores de Letras também próximos do autor: Viviana Bosi, (USP), e Eduardo Sterzi (Unicamp), que escreveram respectivamente a orelha e o posfácio do volume.

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Ao pensar neste novo boletim sobre a poesia de Donizete Galvão, considerei inicialmente mostrar aqui um poema de cada um dos nove títulos reunidos. Depois, concluí que ficaria algo muito longo. Reduzi a seleção para apenas cinco poemas, porém adicionei um bônus especialíssimo: um poema em prosa que não está no livro: saiu na revista literária Inimigo Rumor em 2003.

Passemos à leitura. O primeiro poema de nossa minisseleta é “Pássaros Urbanos”, extraído do livro póstumo O Antipássaro, publicado em 2018. Neste texto o autor analisa a estranheza dos antipássaros que são as gruas das construções, espécies mecânicas que, conforme o poeta, “têm as/ plumas/ mais/ vistosas/ da cidade”.

As gruas (guindastes da construção civil), homônimas das fêmeas do grou, aves de pernas e pescoços longos, destacam-se na paisagem urbana e são um símbolo dos negócios, “da força da grana que ergue e destrói coisas belas”, como canta Caetano Veloso. Basta lembrar que agora, durante a pandemia, as gruas permaneceram em plena atividade.

Em contraste, outras aves, sem voz (“incanoras”, no dizer do poeta) e menos afortunadas, pertencentes à espécie Homo sapiens, “habitam/ as junções/ dos viadutos/ entre trapos/ de papelão”. Neste poema, assim como em vários outros ao longo de sua obra, Donizete Galvão dá provas de sua extrema habilidade ao tratar de temas difíceis como esse da injustiça e da desigualdade social, sem nunca escorregar para o lugar-comum ou o recado panfletário.

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O próximo poema é “Deformação” (de Mundo Mudo, 2003). Agora, o personagem principal é outra ave, desta vez de verdade: com asas, sangue e penas. Muitas penas. Trata-se de uma pomba atropelada no asfalto. O poeta finge depreciar o animalzinho, chamando-o de “pomba suja/ urubuzinha de metrópole/ ratazana”. Mas na realidade ele se sente solidário e intimamente identificado com a ave.

Isso fica comprovado em vários outros textos de sua obra, especialmente no próximo poema, “A Cidade no Corpo”, do livro Pelo Corpo (2002). Aí, ele diz, a respeito de São Paulo: “Esta cidade: minha cela./ Habita em mim/ sem que eu habite nela”. Mineiro de cidade pequena, Donizete Galvão sempre considerou a megalópole paulistana um espaço sufocante. Isso explica os últimos versos dirigidos à pomba morta: “Bem feito para você./ Viu o que a cidade nos fez?” Portanto, ele, homem, assume a mesma condição da ave despedaçada.

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O poema “Fora de Linha” (de Ruminações, 1999) põe em foco os “homens obsoletos”, expressão usada pelo poeta para designar as pessoas que, embora tendo preparação profissional (“faculdade, inglês e cursos de pós-graduação”), não servem mais para as novíssimas funções existentes nas empresas.

O último texto extraído de Poesia Reunida é “Cidade”, trazido do livro de estreia do autor, Azul Navalha, de 1988. Coerente em toda a sua trajetória, o poeta, já desde aí, via a cidade grande como um “blues de cruciais impossibilidades”. E mais: “nada de eterno palpita no seu coração/ tudo já nasce velho para ser refeito amanhã”.

Devo deixar claro que esta é apenas uma amostra de poemas seguindo o fio de uma das perspectivas da poesia de Donizete Galvão. Mas há também vários outros rumos. Por exemplo, o da celebração da música e das artes plásticas, as reflexões existenciais, os amigos e as memórias da vida no interior mineiro.

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Vem, por fim, o poema “Reportagem”, um bônus oferecido pelo poesia.​net a seus leitores. Trata-se de um poema em prosa, publicado originalmente na extinta revista literária Inimigo Rumor e nunca recolhido em livro.

O texto compõe-se de perguntas de um repórter a um homem sem-teto. “O senhor se incomoda de morar debaixo da ponte?” Cada interrogação inclui a anterior e vai acrescentando novo trecho: “O senhor se incomoda de morar debaixo da ponte com sua mulher ainda tão jovem?”. O texto certamente parte de aberrações como aquelas comuns na televisão. A mãe acaba de ter o filho fuzilado pela polícia, à porta de casa, e o repórter insiste em perguntar: “O que a senhora está sentindo?”

Mesmo quando expressava angústias profundas e complexas dores pessoais, Donizete Galvão sempre encontrava um jeito de fazer essas mágoas passarem por filtros do cotidiano, em situações triviais, como a catraca do metrô, o ipê-roxo florindo em São Paulo ou a pequena tragédia da pomba atropelada no trânsito.

O sofrimento donizetiano não é espacial, esotérico, hermético. Ao contrário: são dores que se expressam por meio de coisas reais e quase existem de se pegar. É por isso que essa “Reportagem” sobressai tanto e provoca um rumor amigo de indignação e empatia, sentimentos bem próximos de todos nós, leitores.

Nesse aspecto, acerta em cheio a professora Viviana Bosi, quando fala, na orelha de Poesia Reunida, sobre a permanência da poesia de Donizete Galvão. Escreve ela: “O que permite a duração é uma qualidade ruminativa da atenção fincada no afeto denso pelas coisas e gentes miúdas”.

No posfácio, Eduardo Sterzi vai no mesmo rumo. Ele diz que Donizete Galvão produziu uma poesia “que se recusa ao espetáculo, que sobretudo não cabe na lógica da espetacularização e da mercadoria; uma poesia que insiste em olhar para as coisas miúdas e para os seres à margem (...)”.

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Jornalista e publicitário, o poeta Donizete Galvão (Borda da Mata-MG, 1955; São Paulo-SP, 2014) escreveu os seguintes livros: Azul navalha (1988); As faces do rio (1991); Do silêncio da pedra (1996); A carne e o tempo (1997); Ruminações (1999); Pelo corpo (2002), em parceria com Ronald Polito; Mundo mudo (2003); O homem inacabado (2010); e O antipássaro (póstumo, 2018).

O volume Poesia Reunida, a ser lançado este mês, contém todos os títulos acima. Mas a obra de Donizete Galvão também inclui livros para crianças [O sapo apaixonado (Musa, 2007); Mania de bicho (Positivo, 2009); e Escoiceados (Casa de Virgínia, 2014)], além da participação do autor em numerosas antologias coletivas.

Donizete Galvão já esteve aqui no poesia.net nas edições n. 425; n. 400; n. 302; n. 302a; n. 236; e n. 19.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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LANÇAMENTO

Poesia reunida - Donizete GalvãoO lançamento da Poesia Reunida, de Donizete Galvão, será no próximo dia 30/09, sábado, às 11h, na Casa das Rosas, Avenida Paulista, 37 - São Paulo-SP.


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CARVALHO E GALVÃO: COINCIDÊNCIAS

Permitam-me registrar uma coincidência. Em maio de 2018, quando este boletim atingiu o n. 400, decidi fazer uma edição comemorativa, homenageando poetas já destacados aqui, mas que infelizmente haviam falecido. Dois nomes foram escolhidos: o cearense Francisco Carvalho (1927-2013) e o mineiro Donizete Galvão (1955-2014).

Curiosamente, Francisco Carvalho esteve no boletim anterior a este, graças à antologia Escaladas do Chão e da Vertigem (Confraria do Vento, 2022). Agora, chega a Poesia Reunida de Donizete Galvão. Mas há ainda outra coincidência. Nos primeiros anos do poesia.​net (2003/2004), quem me proporcionou o primeiro contato com a obra de Francisco Carvalho foi exatamente Donizete Galvão, que me emprestou o livro Quadrante Solar, com o qual Carvalho ganhara o Prêmio Nestlé em 1982.



Coisas e gentes miúdas

• Donizete Galvão


              



Pablo Picasso - Mulher sentada-1927
Pablo Picasso, pintor espanhol, Mulher sentada (1927)


PÁSSAROS URBANOS

ave
nenhuma
faz seu
ninho
nas gruas
das construções

elas próprias
— aves
pernaltas —
erguem
moradas
de pedra

as gruas
têm as
plumas
mais
vistosas
da cidade

outras,
incanoras,
habitam
as junções
dos viadutos
entre trapos
e papelão

muitos
pedem
pela extinção
dessa espécie
tão pouco afeita
às gaiolas

      De O antipássaro (póstumo, 2018)

   

DEFORMAÇÃO

eh pomba suja
      urubuzinha de metrópole
ratazana
ávida por dejetos
         bebedora de água preta
aí está você:
                   uma chapa
                   uma pasta
de pena e sangue
milhares de vezes
vai-se repetir sua morte
               sob os pneus
eh pomba lerda
viu o que a cidade lhe fez?
Bem feito para você.
Viu o que a cidade nos fez?

      De Mundo mudo (2003)



Pablo Picasso - Tête de femme-1939
Pablo Picasso, Cabeça de mulher (1939)


A CIDADE NO CORPO

A cidade perfura
o corpo
até a medula.
Contamina os ossos
com seus crimes.
Bica o fígado,
pesa sobre os rins.
Imprime seu labirinto de cinzas
na árvore dos pulmões
A cidade finca raízes
no espaço das clavículas.
Esta cidade: minha cela.
Habita em mim
sem que eu habite nela.

      De Pelo Corpo (2002)



FORA DE LINHA

      para Antônio Nóbrega

Os homens obsoletos foram dispensados
como candidatos a recrutas, por excesso de contingente.
Os homens obsoletos vagam qual zumbis
em praças, parques e estações de metrô.
Os homens obsoletos alimentam-se de jornais
e engordam nos sofás diante da televisão.
Os homens obsoletos cumpriram as exigências:
faculdade, inglês e cursos de pós-graduação.
Os homens obsoletos mantiveram-se jovens
com dietas, ginástica e oficinas de auto-estima.
Os homens obsoletos tiveram bloqueados
seus crachás, suas senhas e cartões de crédito.
Os pais não querem os homens obsoletos.
— Ah, quanto dinheiro investido em sua educação!
Os amantes não querem amar os homens obsoletos
porque estes têm a pele com gosto de ferrugem.
O mercado não absorve os homens obsoletos,
pois não existe demanda para a exportação.
Não há como reciclá-los para que se encaixem
nos mutáveis programas de reengenharia.
Terapeutas recomendam aos homens obsoletos
que ocupem o tempo ocioso nos museus e galerias,
nas paróquias ou mesmo em clubes de filatelia.
Os homens obsoletos caíram em desuso
como os chapéus, as galochas e o jogo de bilboquê.

      De Ruminações (1999)



Pablo Picasso - Les baigneuses-1918
Pablo Picasso, As banhistas (1918)


CIDADE

ó blues de cruciais impossibilidades
           dores de amores inexistentes
rosas amarelas mortas no apartamento
           beijos e saliva nas tardes desérticas

ó visão depressiva do asfalto molhado
           prédios encardidos & a horda dos bárbaros
arquitetura de guerra de dias provisórios
           espelho poluído da cidade da chuva

ó mundo artificial com sua natureza de néon
           espetáculo de vitrines e exibições
nada de eterno palpita no seu coração
           tudo já nasce velho para ser refeito amanhã

      De Azul navalha (1988)



••• ————— Poema-bônus ————— •••



REPORTAGEM

O senhor se incomoda de morar debaixo da ponte? O senhor se incomoda de morar debaixo da ponte com sua mulher ainda tão jovem? O senhor se incomoda em morar debaixo da ponte com sua mulher tão jovem e um filho pequeno? O senhor se incomoda em morar debaixo da ponte com sua mulher tão jovem, um filho pequeno, num barraco feito de papelão? O senhor se incomoda em morar debaixo da ponte com sua mulher tão jovem, um filho pequeno, num barraco feito de papelão, comendo o lixo das ruas? O senhor se incomoda em morar debaixo da ponte com sua mulher tão jovem, um filho pequeno, num barraco feito de papelão, comendo lixo das ruas, com ratos e baratas ao seu redor? O senhor se incomoda em morar debaixo da ponte, com sua mulher tão jovem, um filho pequeno, comendo lixo das ruas, com ratos e baratas ao redor, num barraco de papelão que o fogo acabou de queimar? O senhor está triste?

      in revista Inimigo Rumor n. 14 (1º semestre de 2003), p. 107






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Carlos Machado, 2023


Foto: Anna Lívia Marques de Souza


Donizete Galvão
•  “Pássaros urbanos”, “Deformação”, “A cidade no corpo”,
    “Fora de linha”, “Cidade”
    in Poesia Reunida
    Círculo de Poemas, São Paulo, 2023
•  “Reportagem”
    in revista Inimigo Rumor n. 14, p. 107
    Cosac Naify/Cotovia, São Paulo/Lisboa, 2003
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* Carlos Drummond de Andrade, "Nosso Tempo", in A Rosa do Povo (1945)
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* Imagens: quadros do pintor espanhol Pablo Picasso (1881-1973)