Número 515 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 30 de agosto de 2023

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«Uns expiram sobre cruzes, / outros, buscando-se no espelho.» (Cecília Meireles) *

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Francisco Carvalho
Francisco Carvalho



Amigas e amigos,

O poeta cearense Francisco Carvalho (1927-2013) já esteve nesta página um bom punhado de vezes. Retorna agora, graças ao lançamento do livro Escaladas do Chão e da Vertigem (2022), uma antologia de sua poesia organizada pelo poeta Assis Lima e pela editora Karla Melo, para a Confraria do Vento.

A antologia Escaladas do Chão e da Vertigem contém poemas extraídos de 21 livros de Francisco Carvalho, cobrindo um período que vai de 1971 (ano de publicação de Os Mortos Azuis) até 2009, quando saiu Exercícios de Utopia. A obra do poeta é ainda maior. Dela fazem parte mais seis livros, publicados entre 1955 (Cristal da Memória) e 1969 (Memorial de Orfeu). No total, Francisco Carvalho publicou 34 títulos, todos de poesia.

Para a presente edição do boletim, selecionei sete poemas, com o cuidado de pinçar apenas poemas não incluídos em edições anteriores. Vamos à leitura.

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O primeiro texto, “Poder da Palavra”, vem de O Silêncio é uma Figura Geométrica (2002). Nesse curtíssimo poema, o autor sintetiza algumas de suas concepções sobre a arte poética. Em seu entender, basta uma palavra “para acordar os/ demônios/ que se hospedam/ no poema”. E também uma só palavra é suficiente “para ferir de morte o poema”. Aí está o poder de um único vocábulo: sozinho, é capaz de acender a escorva lírica do poema ou, ao contrário, de pôr a pique toda a estrutura em que o objeto se baseia.

O próximo texto é “Elegia da Casa Velha (3)”, um soneto memorial, no qual Francisco Carvalho relembra a habitação de sua infância, “casa espectral, que o luar clareia”. A lembrança se encerra com os passos do pai, “passos de areia/ rumo à noite infinita das esferas”.

O próximo poema é “Reação em Cadeia”. Na página, o texto assume a feição gráfica de uma ponta de seta e enfeixa uma longa série de situações (“um dia depois do outro/ um sonho depois do outro/ um mito depois do outro” etc. etc. Lamentavelmente, a primeira metade da seta termina com “um rapto depois do outro” e a segunda metade conclui o poema com “um déspota depois do outro”. A gente sempre tende a atribuir versos assim a um momento pessimista do poeta. E se for apenas uma constatação realista?

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E por falar em déspota, ele aparece mais uma vez no poema sem título “[Os déspotas abominam]”. Conforme o poeta, os tiranos, além de serem avessos ao “odor das multidões”, “engordam/ as hienas do hábito” e “irrigam/ as pastagens do óbito”.

O próximo poema, “Estátuas”, traça novo retrato de figuras como os déspotas. Já de saída, o monumento é lançado ao chão: “As estátuas/ são coisas fátuas” — ou seja, coisas vaidosas e presunçosas. E a quem se homenageia nessas pedras públicas? O poema responde: “deuses e generais/ sob a vaia dos pardais”. Mais contundente ainda, o poeta conclui que “Os verdadeiros heróis/ estão perto de nós”.

Agora, o poema “Dor Essencial”. Com a mesma visão aguda voltada para as questões sociais, Carvalho sustenta: “O que dói não é a mentira/ vertida em nosso cálice/ e que nos dão de beber como se fosse vinho”. “O que dói é sentir./ Sentir que nos esvaímos em água (...)/ O que dói é ver os olhos da pátria/ morrendo à míngua”.

Não é estranho, portanto, ler em “Doação”, último poema da minisseleta, a dedicatória do poeta: “Meu verso inteiro/ é para os que foram expulsos do sonho”. Ou ainda: “Meu verso inteiro/ é para os que deixaram/ a liberdade intacta”.

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Nascido em Russas-CE, Francisco Carvalho (1927-2013) viveu longo tempo em Fortaleza. Publicou mais de três dezenas de títulos, todos de poesia. Foi vencedor do Prêmio Nestlé de Literatura, em 1982, com a coletânea Quadrante Solar e do Prêmio da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, com Girassóis de Barro (1997).

O autor já foi destacado nas seguintes edições do poesia.​net: n. 460 (2021); n. 400 (2018); n. 287 (2013); n. 212 (2007); e n. 102 (2005).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Para os expulsos do sonho


• Francisco Carvalho


              



Rafal Olbinski - Face 2
Rafal Olbinski, pintor polonês, Rosto


PODER DA PALAVRA

Uma palavra
basta
para acordar os
demônios
que se hospedam
no poema.
Uma palavra
basta
para estancar
as veias desatadas
do poema.
Uma palavra
basta
para ferir de morte o poema.

    De O silêncio é uma figura geométrica (2002)



ELEGIA DA CASA VELHA (3)

Minha casa sou eu e as minhas vozes
que o tempo ainda preserva. Minha casa
são murmúrios de pássaros velozes
roçando a noite com sinistra asa.

Minha casa sou eu e os meus sentidos
e as estações num carrossel de glória.
Os passos do ancestral repercutidos
no incerto pensamento e na memória.

Gosto de ouvir o devaneio imenso
desta casa espectral, que o luar clareia.
Esses fantasmas de esquecidas eras

que arrastam pela sombra o seu silêncio.
E os passos de meu pai, passos de areia
rumo à noite infinita das esferas.

    De Rosa geométrica (1990)




Rafal Olbinski - Mermaid
Rafal Olbinski, Sereia


REAÇÃO EM CADEIA

um dia depois do outro
 um sonho depois do outro
  um mito depois do outro
   um corpo depois do outro
    um morto depois do outro
     um vento depois do outro
      um raio depois do outro
       um golpe depois do outro
        um roubo depois do outro
         um rato depois do outro
          um rapto depois do outro
           um pobre depois do outro
          um potro depois do outro
         um grito depois do outro
        um tiro depois do outro
       um tira depois do outro
      um ladrão depois do outro
     um susto depois do outro
    um salto depois do outro
   um coito depois do outro
  um verso depois do outro
 um rosto depois do outro
um déspota depois do outro

    De Romance da nuvem pássaro (1998)



[OS DÉSPOTAS ABOMINAM]

os déspotas abominam
o odor das multidões

os déspotas tropeçam
nos degraus do patíbulo

a palavra do déspota
é uma espada de vidro

as retinas do déspota
são orquídeas de sangue

os déspotas engordam
as hienas do hábito

os déspotas irrigam
as pastagens do óbito.

    De Os exílios do homem (1997)




Rafal Olbinski - Unpredictability.of.retrospective.commitment
Rafal Olbinski, Imprevisibilidade do compromisso retrospectivo


ESTÁTUAS

As estátuas
são coisas fátuas
pedras cúbicas
nas praças públicas
patético invento
que se entrega ao vento
deuses e generais
sob a vaia dos pardais
a estátua é uma árvore
de galhos de mármore
onde até as corujas
desenham garatujas.
Os verdadeiros heróis
estão perto de nós.

    De Raízes da Voz (1996)



DOR ESSENCIAL

O que dói não é a mentira
vertida em nosso cálice
e que nos dão de beber como se fosse vinho.
Não é a certeza do pânico
na hora de morrer, nem a solidão
que lentamente mina o corpo
e a alma desse pântano.
O que dói é sentir.
Sentir que nos esvaímos em água
foragida, em música
de barro e sonolento perfil.
O que dói é ver os olhos da pátria
morrendo à míngua.

    De O tecedor e sua trama (1992)




Rafal Olbinski - Golf-2015
Rafal Olbinski, Golfe (2015)


DOAÇÃO

Meu verso inteiro
é para os que foram
expulsos do sonho.

Os que arrastaram
os tamancos da agonia
pelas estradas da paz.

Os que abriram uma fenda
de sangue e palavras
no cimento da noite.

Os que plantaram
a rosa da esperança
na caliça da ira.

Os que em vão esperaram
pelo roçar da asa
de areia do sigilo.

Os que despencaram
inteiros da vida
e foram inscritos na lápide.

Meu verso inteiro
é para os que deixaram
a liberdade intacta.

Os que abandonaram
a velha concha
por uma pele nova.

    De Rosa dos eventos (1982)





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Carlos Machado, 2023



Francisco Carvalho
      in Escaladas do chão e da vertigem - Antologia
      Seleção e organização: Assis Lima e Karla Melo
      Confraria do Vento, Rio de Janeiro, 2022
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* Cecília Meireles, “Mulher ao Espelho”, in Mar Absoluto (1945)
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* Imagens: quadros do pintor polonês Rafal Olbinski (1943-)