Número 519 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 25 de outubro de 2023

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«Poetas e escritores. / É assim que se diz. / Logo, poetas não são escritores, então o quê —» (Wislawa Szymborska) *

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Handala
Handala



Amigas e amigos,

Desde o início dos atuais conflitos na Faixa de Gaza, neste mês, comecei a pensar em fazer um boletim com poemas sobre Gaza, definida como a maior prisão a céu aberto do mundo. Só que eu não conhecia nem poetas nem poemas que tratassem da questão palestina.

Em dado momento, alguém me enviou um zap com a notícia de que a jovem poeta feminista palestina Heba Abu Naba, de 32 anos, fora morta num bombardeio israelense sobre a cidade de Khan Yunis, na Faixa de Gaza. Curioso, fui à internet ler sobre Heba Abu Naba.

Durante a leitura, descobri uma xará dela, a pintora palestina Heba Zagout. Ao apreciar os trabalhos dessa artista, imaginei: aí estão bons quadros para ilustrar um boletim. Mas depois, na página de Instagram da pintora, percebi que as mensagens mais recentes eram de pêsames e consternação. Sim, tristeza. A pintora Heba Zagout, de 39 anos, também fora vítima dos bombardeios, dias antes da poeta. Segundo o noticiário, morreu junto com os dois filhos.

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Reforçou-se em mim a ideia de fazer o boletim palestino. Mas cadê os poemas? Acabei descobrindo o livro Gaza, Terra da Poesia, publicado em 2022 pela Tabla, editora carioca. Trata-se de uma antologia que reúne 17 jovens poetas da Faixa de Gaza, com organização de um deles, Muhammad Taysir. Escrito em árabe, o livro foi originalmente publicado no Líbano, em 2021. Para pôr os poemas em português, entrou em ação o Grupo de Tradução da Poesia Árabe Contemporânea (gtpac), da USP, coordenado por Michel Sleiman.

Na publicação de Gaza, Terra da Poesia, há um aspecto que é importante sublinhar: todos os recursos arrecadados com a venda desse livro serão revertidos para o Tamer Institute for Community Education, uma ONG que trabalha com educação na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Saiba mais na página da antologia, no site da Editora Tabla.

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Com essa antologia em mãos, tornou-se possível organizar o boletim. Selecionei alguns poemas, mostrados ao lado, e juntei-os a algumas pinturas de Heba Zagout. Da pequena amostra que organizei participam cinco poetas: três mulheres (Amal Abuqamar, Muna Almassdar e Fatima Ahmad) e dois homens: Ahmad Assuq e Bassman Adirawi.

Um detalhe: fui ao site da Editora Tabla e consegui as fotos de alguns dos autores, não de todos, que podem ser vistas antes dos poemas. Para os poetas sem foto, incluí no lugar a imagem de Handala. Quem é Handala? Trata-se de um personagem (garoto de 10 anos) criado pelo cartunista palestino Naji al-Ali (1937-1987).

Handala é um ícone da identidade e da resistência do povo palestino. Há uma coletânea de poemas palestinos em inglês com o título Show Us Your Face, Handala! (Mostre-nos o seu rosto, Handala! Isso talvez se refira ao fato de o menino sempre aparecer de costas). Handala também é citado num dos poemas de nossa minisseleta, como se verá mais abaixo. A inexistência de fotos dos poetas me levou a pôr Handala também no espaço destinado à foto do(s) autor(es), no alto desta coluna.

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Passemos à leitura. A primeira poeta é Amal Albuqamar, professora da cidade de Gaza. Seu poema tem como título “Para a morte. Quando a morte virou símbolo nesta cidade?”. Numa região cercada e frequentemente bombardeada, não parece estranho que uma jovem insista em tratar da morte. Diz ela: “Morre a vida da areia,/ morrem as trepadeiras em cima dos corpos nos muros destruídos que não conservam as lágrimas dos perdedores./ Tudo aqui morre, tudo menos os mortos./ A morte aqui é eternidade (...)”.

A descrição crua do ambiente continua em versos como “A morte aqui é a luta,/ luta entre as coisas esvaziadas de sua realidade / e uma mulher que, como eu, esfrega o corpo com o sal do nada”.

Muna Amassdar é a próxima autora. Já publicou livros em verso e prosa. Trabalha como tradutora e escreve artigos em árabe e em inglês. Selecionei dela o poema “Joguinho”. Eis aí outro texto a mostrar que a guerra reside cotidianamente em Gaza — e também dentro de todos. “Quem apaga a guerra dentro de mim/ e me empresta um pouco de esquecimento?”, inicia o poema. O “joguinho” do título consiste exatamente em perguntar: existem formas de esquecer, de não tomar conhecimento desse terrível dia a dia?

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Vem a seguir a poeta Fatima Ahmad. No livro, a minibio dessa autora é a mais extensa de todas. Aparentemente, ela é que sofreu de forma mais direta as violências em Gaza. Conforme seu perfil traçado na antologia, Fatima já escapou várias vezes da morte. Em 2008, teve a casa destruída, ficou com um projétil alojado nas costas e seu filho perdeu um olho.

No poema “O Calor da Lua” ela traça um retrato da região: “Aqui as ideias nascem livres em torno das flores de romã/ e nas celas a ideia é enterrada viva”. Em outro texto, “Pranto em Modo Clássico pela Terra Palestina”, o eu poético, apesar de todas as dificuldades, insiste em permanecer: “Eu vou porque o cheiro da terra ainda me chama,/ com toda minha determinação eu vou. / Não vou parar, não vou olhar para trás (...)”.

Nesse poema, Fatima Ahmad invoca o personagem-símbolo palestino: “Levante-se, Handala, / não vire as costas, não cruze as mãos atrás,/ seja nosso rosto novo”. Como se vê, ela faz referência à imagem do garoto, que no cartum não mostra o rosto, está sempre de costas e mantém as mãos para trás.

Vem agora o poeta Ahmad Assuq. Nascido na cidade de Gaza, escreve poesia e prosa. No poema “Esperando por Você”, alguém traça planos para “quando a guerra terminar”. Outra vez, inevitavelmente, tudo gira em torno do conflito. O texto descreve os sentimentos de sobreviver a um bombardeio. “Vimos juntos as bombas / que rasgam as pessoas / como trapos esgarçados / quando caem sobre elas / feito feras em fúria”.

Para encerrar nossa pequena seleta, chega o poeta Bassman Addirawi. Natural da cidade de Gaza, nasceu em 1988 e escreve em árabe e em inglês. No poema “Filhos Desobedientes”, ele trata seus temores como filhos rebeldes que crescem contra a vontade do pai. E vem o que já se espera: “Nas horas de guerra, correm para meu coração / procurando um lugar mais quente que meus pés gelados”.

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Após a leitura desses versos de cinco dos dezessete poetas reunidos na antologia Gaza, Terra da Poesia, o leitor certamente tenderá a concordar com a apreciação da professora e poeta mineira Maria Esther Maciel no prefácio da antologia. Para ela, os textos desses jovens palestinos se sustentam “do contraste entre violência e beleza, morte e força vital”. Ela lembra os setenta anos de conflitos que assolam a região e conclui: “O que esses jovens autores trazem de novidade dentro desse contexto é o frescor, a vontade de que a situação sociopolítica se converta em tempos de luminosidade e esperança”.

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Heba Zagout e Heba Abu Nada
Heba Zagout, pintora, e Heba Abu Naba, poeta feminista

Antes de concluir, quero destacar as duas artistas palestinas que, de certo modo, me levaram a este boletim, Heba Zagout (1984-2023) e Heba Abu Nada (1991-2023). Autora dos quadros ao lado, Heba Zagout nasceu na cidade de Gaza, estudou design gráfico e graduou-se em Belas Artes na universidade Al-Aqsa. Sobre sua pintura, ela declarou a uma revista: “Tratei de expressar os sentimentos, emoções e tensões negativas que ocorrem em Gaza. Considero a arte uma mensagem que entrego ao mundo exterior por meio de minha expressão da causa palestina e da identidade palestina”. Heba Zagout morreu aos 39 anos em 13 de outubro último, junto com os dois filhos pequenos, num bombardeio na cidade de Gaza.

Mais jovem que Zagout, Heba Abu Nada nasceu em Meca, na Arábia Saudita. Estudou bioquímica na Universidade Islâmica de Gaza e fez o mestrado em Nutrição Química. Poeta e prosadora, em 2017 publicou o romance Oxygen is Not for the Dead (O oxigênio não é para os mortos). Heba Abu Nada, de 32 anos, morreu em decorrência de um bombardeio em Khan Yunis, no sul da Faixa de Gaza, no dia 20 de outubro.

Seu último poema, escrito um dia antes de sua morte, diz: “A noite na cidade é escura, exceto pelo brilho dos mísseis; silenciosa, exceto pelo som do bombardeio; aterradora, exceto pela promessa lenitiva da oração; tenebrosa, exceto pela luz dos mártires”.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Canções da terra devastada


• Amal Albuqamar   • Muna Amassdar
• Fatima Ahmad  • Ahmad Assuq
• Bassman Addirawi


              


Heba Zagout - Jerusalem-2023
Heba Zagout (1984-2023), pintora palestina morta num bombardeio em Gaza, Jerusalém (2023)




Antonio Brasileiro  • Amal Albuqamar
Nascida na cidade de Gaza. Bacharel em Língua Árabe e
  professora no campo da educação especial.

PARA A MORTE.
QUANDO A MORTE VIROU SÍMBOLO NESTA CIDADE?

Os cigarros da hora se acabaram
enquanto o homem traga o tempo irritado entre os lábios,
esmaga a cinza do pecado e enterra milhares de mulheres nos dedos.
Deus pendura as plaquinhas desta vida no corpo dos mortos,
e os fios emaranhados choram abraçados pelo sangue e se estendem entre os túmulos dos vivos para puxar o coração dos coveiros.
Morre a vida da areia,
morrem as trepadeiras em cima dos corpos nos muros destruídos que não conservam as lágrimas dos perdedores.
Tudo aqui morre, tudo menos os mortos.
A morte aqui é eternidade,
a morte aqui é aquele bêbado que escreve um poema na rocha usando o cinzel
de seu eu, sem se dar conta.
Não sabe que há uma fenda na pedra da existência, vazia de sentido.



A morte aqui é a luta,
luta entre as coisas esvaziadas de sua realidade
e uma mulher que, como eu, esfrega o corpo com o sal do nada.
Nenhuma morte cola no vestido das noivas quando gritam nas primeiras núpcias.
Nenhuma luz nasce do ventre da estéril que carrega dentro dela um poema.
Não tem sentido o vazio,
não tem outro sentido a realidade
que este: nascer, sempre, do amanhecer do sétimo céu.

      Tradução de Alexandre Facuri Chareti



Heba Zagout - untitled-2023
Heba Zagout, Sem título (2023)




Antonio Brasileiro  • Muna Amassdar
Poeta e prosadora. Bacharel em literatura de língua inglesa,
  escreve artigos em árabe e em inglês.

JOGUINHO

Quem apaga a guerra dentro de mim
e me empresta um pouco de esquecimento?
Quem redefine minha noite
e a dos rebeldes mais eminentes embaixo dos destroços?
Quem devolve nossos passos às calçadas
e devolve a elas seus nomes?
Há alguém que se atreva a beliscar minha bochecha
diante da falta de sono e da fúria do bombardeio?
Alguém aqui corajoso o bastante
para amaldiçoar a guerra escondida em nosso pão?
Alguma janela onde eu reúna as nuvens do fim do dia
e impeça a noite de dar os primeiros passos?
É possível comprar uma língua
e um coração tranquilo?
Quem sabe assim eu possa falar da carnificina
ou apagar, talvez,
o fogo da guerra dentro de mim.

      Tradução de Alexandre Facuri Chareti



Heba Zagout -peace from gaza-2020
Heba Zagout, Paz em Gaza (2020)



Handala  • Fatima Ahmad
Mora na Faixa de Gaza e já escapou várias vezes da morte.
  Em 2008, foi baleada nas costas e seu filho perdeu um olho.


O CALOR DA LUA

(...)

Aqui as ideias nascem livres em torno das flores de romã
e nas celas a ideia é enterrada viva.
Aqui em todo canto há um carcereiro
que come os ossos dos jovens e suas vidas
e até as tranças de suas amadas!
Que valor tem a palavra...
se tudo aqui está debaixo dos sapatos do algoz?
Levante-se, Handala,
não vire as costas, não cruze as mãos atrás,
seja nosso rosto novo.

(...)

      Tradução de Maria Carolina Gonçalves



PRANTO EM MODO CLÁSSICO PELA TERRA PALESTINA

Eu vou porque o cheiro da terra ainda me chama,
com toda minha determinação eu vou.
Não vou parar, não vou olhar para trás,
as sombras das vinhas me esperam, não vou olhar para trás,
o cheiro do café fervido ainda está lá, para onde eu vou,
ouço os ecos do arghul me chamando
e, dentro de mim, os poemas dos camponeses no tempo das colheitas.
Como é frágil a vida quando vivemos os poemas no estranhamento,
quando só o que nos separa deles é o cercado que rodeia nossas nuvens,
nossa terra, nosso céu, nossa chuva.



Eu vou para minha aldeia na Palestina.
Ela sente minha falta e eu sinto falta dela.
É um amor nato e latente,
é um fogo que não apaga.
Bissan, Alkármil, Yafa e Safad,
Alquds, Aljalil e Annássira,
deixem-me sofrer, ó cidades,
não chorem por mim, ó cidades,
talvez um dia as lágrimas ganhem asas!

      Tradução de Maria Carolina Gonçalves



Heba Zagout - untitled-woman-2023
Heba Zagout, Sem título (2023)




Antonio Brasileiro  • Ahmad Assuq
Nasceu na cidade de Gaza, em 1999. Escreve poesia e prosa.
  Acredita que os poemas têm asas, como os pássaros.


ESPERANDO POR VOCÊ

Quando a guerra terminar
vou levar você a um restaurante luxuoso
sem ter medo da morte
e vou lhe comprar um café.

Vou cantar
diante do mar
para você esquecer o que aconteceu esta noite.

Agora sob o bombardeio
nós seremos heróis,
mas quando a guerra terminar vou convidar você para dançar,
só nós dois,
sem a companhia de uma bomba inesperada,
sem nos assombrar um artefato no céu.

Uma semana
e tudo vai acabar
vamos ficar bem...
O mundo vai abrir o jornal
e vir correndo nos socorrer.

Depois da guerra terminar
não vamos nos sentar na frente do espelho
e olhar fixamente nossas feições perdidas.

Vamos colocar máscaras
para não ter que perder
estes rostos que já não reconhecemos.

A guerra é dura,
mas me leva a amar ainda mais.
Vamos brindar a estes tempos
e o mundo será testemunha de que estávamos juntos
sob o bombardeio.

Logo estaremos reunidos
e nessa hora
o mundo vai voltar à letargia habitual.

Todos os rostos dos homens
que foram retirados debaixo dos escombros
parecem o rosto do meu pai.
E o rosto das crianças que gritam.
E o seu, seu rosto
que não me deixou um só minuto em toda a cena.

Vimos juntos as bombas
que rasgam as pessoas
como trapos esgarçados
quando caem sobre elas
feito feras em fúria.

Pensaram que morri,
mas eu estava esperando por você.
Não me ouviram,
gritando seu nome.

A morte não os deixa ouvir.
Não morri.
Caí,
esperando por você.

      Tradução de Felipe Benjamin Francisco



Heba Zagout - no to racism-2020-detail
Heba Zagout, Não ao racismo (2020), detalhe




Handala  • Bassman Addirawi
Nascido na cidade de Gaza em 1988. Escreve em árabe e em
  inglês. Diz que a poesia lhe faz sentir liberdade e conforto.

FILHOS DESOBEDIENTES

Meus temores crescem dentro de mim
como filhos que espicham a cada dia.
Seus ossos crescem novos centímetros
e se parassem na frente do espelho
veriam que ganharam altura de um dia para outro
e estão a ponto de trocar a dentição por dentes permanentes.
Nas horas de guerra, correm para meu coração
procurando um lugar mais quente que meus pés gelados.
Do meio dos escombros nasce de mim outro filho do desejo
que parece estar só, como um José entre os irmãos
invejado por eles
que brigam com ele e o torturam.
Vem até mim, certa noite, chorando, sangrando
mesmo eu os repreendendo constantemente.
O problema é que não sei mais
se quero me livrar deles
ou se sou o pai que ama até os filhos desobedientes.

      Tradução de Beatriz Negreiros Gemignani





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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2023



Poetas participantes nesta edição:
• Amal Albuqamar  • Muna Amassdar  • Fatima Ahmad
• Ahmad Assuq  • Bassman Addirawi

      Todos os poemas:
      in Gaza, Terra da Poesia
      Muhammad Taysir, org.
      Editora Tabla, Rio de Janeiro, 2022
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* Wislawa Szymborska, "Medo do Palco", in Um Amor Feliz (2016), trad. Regina Przbycien
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* Imagens: quadros da pintora palestina Heba Zagout (1984-2023), morta num bombardeio na cidade de Gaza, em 13 de outubro de 2023.