Número 530 - Ano 22

Salvador, quarta-feira, 22 de maio de 2024

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«O que esperais de um Deus? / Ele espera dos homens que O mantenham vivo.» (Elizabeth Bishop) *

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Ronaldo Costa Fernandes
Ronaldo Costa Fernandes



Amigas e amigos,

Incansável em sua produção intelectual, o poeta (também romancista, contista e ensaísta) Ronaldo Costa Fernandes acaba de lançar A Trama do Avesso (7Letras, 2024), seu décimo primeiro título de poesia. Mais uma vez, Costa Fernandes apresenta aos leitores um volume no qual esbanja criatividade em seu estilo marcadamente pessoal.

O autor já é conhecido dos leitores deste boletim. Esteve aqui nas seguintes edições: n. 503; n. 421; n. 313; n. 263; e n. 126. Com isso, os leitores do poesia​.net têm o privilégio de contar com uma boa amostra da poesia de Ronaldo Costa Fernandes.

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Em A Trama do Avesso encontra-se, mais uma vez, a força da poesia de Ronaldo Costa Fernandes. Para esta edição, selecionei cinco poemas, que começam com “O Sagrado e o Profano”, uma homenagem a poetas da predileção do autor. Abre a fila o vate da pedra no caminho: “Entre os versículos/ de que mais gosto/ estão o do profeta/ Carlos que foi um anjo torto”.

Seguem-se outros poetas brasileiros, como o Andrade da “gota de sangue/ que pinga em cada aleluia”. Mais adiante, virão, sempre em tom de reverência religiosa, João — “não o Batista,/ mas o do Recife” — e seu primo Manuel. Saltando para outros tempos e países, a louvação passa também pelo “jardineiro/ Charles que cultivava/ rosas do mal” e pelo cantor cego, “Homero ou Borges”.

Vem a seguir um poema “O Corpo da Cidade”. Nele o poeta brinca com o próprio corpo como se fossem duas urbes antigas: “a cidade baixa dos instintos/ e a cidade alta da razão”. Da diferença de níveis entre as duas localidades do corpo resultam desencontros, tempestades e desrazões.

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Em “Velocidade das Estrelas”, o discurso tem início como se estivéssemos numa aula de física. “Tudo na vida tem sua velocidade”, diz o primeiro verso. Daí parte-se para a locomoção, mais rápida ou mais lenta, de aviões e navios. A lição, por fim, chega à velocidade do poema, bólido que se desloca no tempo e no espaço. Confira.

No poema “Habitação e Melancolia” o ambiente de discussão se transfere para a memória, nas páginas dos álbuns de fotografias. Ali, garante o narrador, “estão colados os dias felizes”. Também lá estão os pais e os avós, “que agora vivem mortos”. Esta última frase constitui uma contradição apenas para a lógica formal, atenta somente à superfície das palavras. Mas o poeta sabe que, no país da memória, o tempo é sempre presente. Então, os mortos vivem. Aliás, Fernando Pessoa, na voz de Álvaro de Campos, já disse, relembrando a infância: “Eu era feliz e ninguém estava morto”.

Mais um poema, “Abalo Sísmico”. Agora, os sentimentos do eu poético são regulados pelo movimento geológico de “placas tectônicas”. A mente oscila entre “certezas maciças” e “opiniões equivocadas”. Para manter o mínimo de equilíbrio no meio da turbulência, o narrador elege o amor como seu epicentro.

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Cada novo livro de Ronaldo Costa Fernandes é sempre um objeto caleidoscópico, oferecido a leituras múltiplas e diferentes focos de atenção. Confesso a vocês que me debrucei sobre A Trama do Avesso e fui anotando uma série de poemas. Voltei depois e, daquela lista, decidi quais poemas seriam escolhidos para este boletim.

Contudo, agora, ao começar a escrever, fiquei novamente em dúvida quanto aos poemas escolhidos. Isso, de um lado, revele uma fragilidade minha. Mas, de outro, demonstra a indiscutível fertilidade poética do autor.

A respeito de outra coletânea do poeta, já escrevi aqui que sua criação lírica sempre observa pessoas e coisas e perquire sobre aspectos menos iluminados do cotidiano. São indagações que não têm medo de cutucar o mal-estar, como acontece na verdadeira poesia.

Um dos aspectos que se destacam em todos os livros de poemas de Ronaldo Costa Fernandes é a variedade das metáforas, que — sem criar momentos de obscuridade — trafegam por áreas inesperadas, com vasto arsenal de surpresas para o leitor. Nos poucos poemas mostrados aqui, por exemplo, aparecem poetas canônicos; a topografia de cidades; a velocidade das estrelas e dos poemas no tempo; fotografias contempladas no “quarto dos fundos da memória”; e até placas tectônicas que provocam abalos sísmicos entre certezas e opiniões do eu poético.

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Romancista, poeta e ensaísta, Ronaldo Costa Fernandes nasceu em São Luís-MA, em 1952, criou-se no Rio de Janeiro e depois fincou raízes em Brasília. Morou durante nove anos na Venezuela, onde dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas. Foi também coordenador da Funarte em Brasília, até 2003.

Costa Fernandes é doutor em Literatura pela Universidade de Brasília e já ganhou vários prêmios literários, entre os quais o Casa de las Américas, com seu quarto romance, O Morto Solidário, de 1998, e o Prêmio ABL de Poesia, 2010, com o livro A Máquina das Mãos. É membro da Academia Maranhense Letras.

No campo da poesia, Costa Fernandes é autor de onze livros, entre os quais A Trama do Avesso (2024); A Invenção do Passado (2022); Matadouro de Vozes (2018); O Difícil Exercício das Cinzas (2014); A Máquina das Mãos (2009); Andarilho (2000); e Estrangeiro (1997).


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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A trama do avesso

• Ronaldo Costa Fernandes


              



Pava Wülfert - u20
Pava Wülfert, pintor colombiano, U20


O SAGRADO E O PROFANO

Entre os versículos
de que mais gosto
estão o do profeta
Carlos que foi um anjo torto.

Os salmos são
os de Andrade
que recitam o desvario
da cidade
e a gota de sangue
que pinga em cada aleluia.

Meus cânticos
são do jardineiro
Charles que cultivava
rosas do mal.

O meu Cântico dos cânticos
é o do cantor cego
Homero ou Borges:
um cantou a guerra,
outro Ulisses sem mastro
ou cera de abelha
para cair na tentação
das bibliotecas.

Minha bíblia
é um evangelho
segundo João,
não o Batista,
mas o do Recife,
primo de Manuel,
neto de outro Cabral.



Pava Wülfert - untitled 78
Pava Wülfert, Sem Título 78


O CORPO DA CIDADE

Meu corpo é formado
por duas cidades
como Salvador, São Luís:
a cidade baixa dos instintos
e a cidade alta da razão.
Mas há dias
que a cidade alta se convulsiona,
e a cidade baixa é segura e regrada.
Em outros, as duas cidades
se misturam, principalmente
quando há tempestades pelo ar,
que é outra cidade acima das cidades.
Chove então a desrazão,
desregula-se o instinto baixo,
inundam-se os becos e vielas
dos meus pensamentos de cidade alta.
Cria-se um desgoverno
e os altos e baixos de mim
se revoltam na cidade
da razão despudorada.

VELOCIDADE DAS ESTRELAS

Tudo na vida tem sua velocidade.
O avião com seu focinho rápido
desloca estupidamente
um vilarejo de homens sentados.
Os navios,
que são velocidade em nós,
nos carregam como se uma cidade
mudasse de endereço.
Até mesmo
o poema tem sua velocidade.
Escrevo hoje e, se por sorte
algum desatento venha porventura me ler
daqui a cem anos,
o que lerá é o brilho
de uma estrela morta.



Pava Wülfert - ultitled mil
Pava Wülfert, Sem Título Mil


HABITAÇÃO E MELANCOLIA

Habito o quarto
dos fundos da memória.
É lá que guardo
meus hábitos mais antigos.
Sei em que caixa
alugo os romances
que me inquilinavam o corpo.
Num álbum de fotografias
— quando existiam álbuns de fotografia —
estão colados os dias felizes.
Todos estão jovens,
os pais e os avós,
que agora vivem mortos.
Não há nostalgia
— essa doença da saudade —
apenas a constatação
de que estou em fotos
no celular dos filhos,
uma imagem
sem paredes para sustentá-la.

ABALO SÍSMICO

O centro do mundo me abala.
Se movem dentro de mim
placas tectônicas
de contrastes turbulentos
entre a maciça certeza
e o bloco monolítico
das opiniões equivocadas.

A escala Richter do que vivo
abala minhas estruturas.
Fico me perguntando
se tremo nas bases
ou se o mundo é torto
e cospe fogo.
Minhas mãos conhecem
o abalo sísmico do que toco.
Em meio aos tremores,
amor é o meu epicentro.




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Carlos Machado, 2024



 • Ronaldo Costa Fernandes
    in A Trama do Avesso
    7Letras, Rio de Janeiro, 2024
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* Hilda Hilst, "Passeio", in Exercícios, Ed. Globo (2002)
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* Imagens: colagens da artista paulistana Pava Wülfert (1975-)