Número 531 - Ano 22

Salvador, quarta-feira, 5 de junho de 2024

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«De repente, o silêncio deixara de respirar.» (Fernando Pessoa) *

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Antonio Brasileiro e Chico Buarque
Antonio Brasileiro, Chico Buarque



Amigas e amigos,

Neste mês, junho de 2024, dois de nossos mais destacados artistas brasileiros da palavra completam 80 anos: o professor, poeta e pintor baiano Antonio Brasileiro, no dia 15, e o cantor, compositor, dramaturgo e romancista carioca Chico Buarque, no dia 19.

Dedicado de corpo, alma e palma à poesia, este boletim não poderia deixar de registrar essas gratas efemérides. Portanto, esta edição do poesia.​net apresenta poemas de Antonio Brasileiro e letras de canções de Chico Buarque, dois artífices da palavra.

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Nascido em Ruy Barbosa-BA, Antonio Brasileiro é conhecido dos leitores que acompanham este boletim. O poeta já esteve aqui nas edições individuais 419, 351, 293 e 26.

Titubeei bastante durante o processo de escolha dos poemas de Brasileiro para esta homenagem. Primeiro, pensei em encontrar em sua Poesia Completa (lançada em dois volumes pela Editora Mondrongo, em 2021 e 2022), poemas ainda não citados aqui neste quinzenário.

Selecionei alguns textos e cheguei a colocá-los na página. Depois, mudei de ideia e decidi fazer um apanhado de poemas já publicados. Pincei quatro deles entre os que, no meu entender, reverberam mais entre os leitores. Afinal, o momento é de celebração. Decidi também repetir aqui os comentários que fiz nas primeiras postagens dos poemas.

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Comecemos, então, com “Relato”, do livro Desta Varanda (2011). Aí está um pedaço terrível da vida atual nas grandes cidades brasileiras. Carros, engarrafamentos, ruídos, grunhidos. E um final violentíssimo. O narrador, confortavelmente instalado em sua varanda, apenas relata.

Isso me lembra o documentário Um Lugar ao Sol (2009), de Gabriel Mascaro, que trata do universo dos moradores em coberturas de luxo de três metrópoles brasileiras: Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Uma das entrevistadas, carioca, diz que assiste do alto aos tiroteios entre traficantes. E que as balas tracejantes constituem um espetáculo “lindo”, assim como fogos de artifício. Atenção, repito: não estou falando de uma história de ficção, mas de um documentário! Então, o que parece absurdo ou exagerado neste “Relato” de Antonio Brasileiro não é uma coisa nem outra. É apenas a vida urbana brasileira.

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O segundo poema da seleção é o soneto “Os Sinos da Aldeia”, também extraído de Desta Varanda. Este é um poema que tem o condão de conquistar nossa sensibilidade logo na primeira leitura. Foi o caso, comigo: fui capturado por esses sinos de província, que esbanjam clangores e langores. Não há mais o que acrescentar sobre esses bronzes e seus toques impiedosos. O poema diz tudo. E a noite vai caindo pouco a pouco.

Vem a seguir o poema “Olha, Daisy”, de Como Aquela Montanha Sossegada (2018), uma homenagem de Antonio Brasileiro ao múltiplo vate lisboeta Fernando Pessoa, na pessoa de Álvaro de Campos. O fictício engenheiro naval Álvaro de Campos também se dirige, em termos bem parecidos, a uma certa Daisy londrina.

Não resisto à tentação de divagar: se o mineiro Drummond — outro deus nos altares pagãos de Brasileiro — se autointitulava “fazendeiro do ar”, não há dúvida de que Álvaro de Campos, criatura volátil, só pode ser um engenheiro naval de mares inventados e navios sonhados. No poema “Opiário”, o próprio Campos abre o jogo: “Eu fingi que estudei engenharia. / Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda”.

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“Das Coisas Memoráveis”, do livro Pequenos Assombros, é o último poema da seleção brasileiriana. Nele temos um exemplo da poesia reflexiva do autor. “Um dia o mundo inteiro vai ser memória. / Tudo será memória”, assevera o texto. Até Deus. “Deus e os pardais”.

Mestre de uma poesia de reiteradas perquirições, Antonio Brasileiro, em toda a sua extensa obra, não não se cansa de escarafunchar os aspectos obscuros de nossas pequenas e grandes trapaças existenciais. Com um lirismo marcadamente pessoal, não para de desmascarar as aparências enganosas da vida. Diz ele em “Toada”, uma quadra escrita em 1979: “Cada vez que me debruço / sobre minha própria face / não me vejo como sou / mas como sou no disfarce.”

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Passemos agora às letras de Chico Buarque. Confesso que, também aqui, experimentei enorme dificuldade em decidir quais letras destacaria neste boletim. Primeiro, tentei fazer uma lista. Não deu certo: ficou enorme. Para contemplá-la, seriam necessárias várias edições do boletim. Peguei a caixa Chico Buarque - Letra e Música (Cia. das Letras, 1989), consultei a seção “Discografia”. Anotei umas canções, afastei outras, mas a lista só aumentava, até porque esse livro não inclui a obra do compositor de 1990 para cá.

Para sair desse impasse, resolvi fixar um número: quatro canções (inclusive para manter o mesmo número de poemas de Antonio Brasileiro). Além disso, para encher o boletim de sons, estabeleci que essas canções deveriam estar disponíveis em videoclipes na internet. Por fim, depois de muitos vaivéns, cheguei às letras ao lado. Não há aqui qualquer pretensão de afirmar que essas canções, ou letras, sejam “as quatro mais” de Chico Buarque, sob qualquer critério. É apenas uma seleção comemorativa.

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Abre o quarteto uma das mais icônicas criações de Chico Buarque, “Construção”. Lançada em 1971 no álbum homônimo, essa música já foi alvo de numerosas análises, inclusive em trabalhos acadêmicos. O que se destaca, de saída, para fãs e críticos, é a montagem combinatória dos versos. Chico descreve o dia a dia de um trabalhador da construção civil, um pedreiro, que afinal morre atropelado no trânsito brutal da cidade.

Os versos são todos alexandrinos (12 sílabas) que terminam com uma palavra proparoxítona. No total, a letra contém dois blocos de 17 versos, mais um de 7 (sigo, aqui, o formato exibido no livro Letra e Música e também no site Chico Buarque).

Nas duas primeiras estrofes, todos os versos começam da mesma forma e praticamente se repetem, com exceção da última palavra, a proparoxítona, que vai sendo trocada. Assim, na estrofe 1, o pedreiro “Amou daquela vez como se fosse a última”; na 2, “Amou daquela vez como se fosse o último”; e na última, “Amou daquela vez como se fosse máquina”.

Na letra impressa, se você cobrir o lado direito do texto e comparar essas duas estrofes, verá na segunda uma perfeita repetição da primeira, verso a verso. A grande mágica do texto ocorre na obtenção de novos significados apenas com a substituição das últimas palavras. Nos últimos versos, o pedreiro “Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”; “Morreu na contramão atrapalhando o público”; Morreu na contramão atrapalhando o sábado”.

No livro Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque (Hucitec, 1982), a professora da USP Adélia Bezerra de Meneses observa que, assim como “Pedro Pedreiro”, outra canção com tema similar, “Construção” pode ser enquadrada “como um testemunho doloroso das relações aviltantes entre o capital e o trabalho”. Num texto de aproximadamente 12 páginas, a professora analisa em detalhes o “jogo de palavras” na letra dessa canção.

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A próxima letra do quarteto é “Iracema Voou” (1998). Pois bem, Iracema, aquela dos lábios de mel, deixou o Ceará, sua terra natal, e tornou-se imigrante clandestina nos EUA. Eis aí mais uma personagem feminina de Chico, integrante da extensa galeria que abriga Carolina, Januária, Madalena, Cristina, Angélica, Lily Braun e muitas outras.

Pelo jeito, os esperados bons ventos do sonho americano não sopraram para Iracema. Ela “não domina o idioma inglês” e “lava chão numa casa de chá”. Além disso, “não dá mole pra polícia”. Como é uma moça de tempos anteriores ao WhatsApp, liga a cobrar e se anuncia: “— É Iracema da América”. Com breves palavras, Chico traça o perfil dessa brasileira desgarrada, que “tem saudade do Ceará / mas não muita”.

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“Construção” e “Iracema Voou” são criações de Chico Buarque em autoria exclusiva. Nas duas canções a seguir, “A História de Lily Braun” e “Sinhá”, Chico é apenas o autor da letra. Lily Braun, cuja música foi composta por Edu Lobo, é uma figura muito especial. Ela é personagem do poema “O Grande Circo Místico”, do alagoano Jorge de Lima (1893-1953). Esse poema serviu de base para o espetáculo musical de mesmo nome, com música da dupla Edu Lobo e Chico Buarque.

No poema de Jorge de Lima, Lily Braun, “que tinha no ventre um santo tatuado”, casou-se com Oto Frederico Knieps, dono do Grande Circo Knieps, o circo místico. Mas a história de Lily Braun recriada por Chico Buarque é muito mais próxima das mulheres de hoje.

Na letra de Chico, Lily, a narradora, é uma cantora que se apresenta em dancings e "espeluncas", conforme ela mesma define. A ironia está em que mesmo uma mulher experiente como Lily Braun vai se atrapalhar nas tramas do machismo patriarcal ao se casar com quem ela chama de “o homem dos meus sonhos”. Ouça a música e delicie-se acompanhando a letra. É empolgação garantida, mesmo que você já tenha escutado essa canção milhares de vezes.

Gravada inicialmente por Gal Costa para o disco do Grande Circo Místico, “A História de Lily Braun” já ganhou vida na voz de outras importantes cantoras brasileiras de várias gerações, tais como Leila Pinheiro, Mônica Salmaso, Maria Rita, Maria Gadú e Teresa Cristina.

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Vem agora a última canção das quatro escolhidas: “Sinhá”, que tem música de João Bosco e letra de Chico Buarque. Localizada no contexto da escravidão, a letra conta uma história que atravessa séculos. Na primeira parte, quem fala é um homem escravizado, que sofre bárbaras torturas (“Pra que me pôr no tronco? / Pra que me aleijar?” ou “Pra que que vosmincê / Meus olhos vai furar?”), diante da acusação de ter olhado a sinhá (mulher da família escravagista) no banho. Ele nega tudo.

Na segunda parte, outro narrador põe um fecho na história, falando de um cantor, “herdeiro sarará / do nome e do renome / de um feroz senhor de engenho / e das mandingas de um escravo / que no engenho enfeitiçou sinhá”. Ou seja, o cantor é um descendente do escravo e da sinhá.

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Um viva à poesia de Antonio Brasileiro e à música de Chico Buarque. E longa vida aos dois artistas, com muita música e poesia.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Dois artífices da palavra

• Antonio Brasileiro  • Chico Buarque

              



Pablo Picasso - Retrato de mulher com chapéu-1938
Pablo Picasso, pintor espanhol, Retrato de mulher com chapéu (1938)


• Antonio Brasileiro

RELATO

Enfileirados ao longo da avenida,
porcos para o abatedouro.
A avenida é a principal.
Carros engarrafam.
Ao volante, de soslaio,
freia-se um pouco, observa-se.
O grunhir dos suínos e os freios dos carros
compõem uma musiquinha muito chata.

Anúncio de supermercado? perguntam-nos.
Não, só mil porcos grunhindo.
        Vão morrer.
A polícia (ou os bombeiros?) é avisada,
mas não chega. Um jornalista
sorri e fotografa. Turistas
julgam ser festa (da padroeira?),
crianças assustadas, homens sérios.
E soam subitamente quatro horas.
Hípica é a tarde.

É quando de um furgão descem soldados
a metralhar os bichos
e os homens e as crianças e os turistas
e os jornalistas e os motoristas e as vidraças.
Desta janela o mundo é confortável;
não ponho a cara de fora,
        só relato.

        De Desta Varanda (2011)



OS SINOS DA ALDEIA

São tantos os caminhos desandados
e tantos os amores não havidos —
e a música do mundo nos ouvidos
esboroando-se contra rochedos;
são tantos os segredos não guardados,
tantas as moças tristes nos jardins —
e nós na ponte pênsil sobre nadas
e tudo entardecendo pouco a pouco;
ah, tantos os encontros soterrados
no mais fundo do peito iniludido —
tantas as vozes que jamais se calam
e falam e falam e falam e falam e falam!

E os sinos desta aldeia, clangorosos,
chamando-nos, chamando-nos, chamando-nos.

        De Desta Varanda (2011)



Pablo Picasso - Bebedor de absinto-1901
Pablo Picasso, Bebedor de absinto (1901)


OLHA, DAISY

Olha, Daisy, estou muito cansado.
Acho que não vou vê-la mais à noite.
Vou ler uns livros sobre alguns fantasmas
e rabiscar uns certos desconfortos.
Também quero arrumar uns papéis velhos
deixados nas gavetas da memória —
um homem nunca é mais que amargo espelho
a rebuscá-lo: farpa, sanha, horda
de animais medonhos. Olha, Daisy,
estou muito cansado, como disse,
e mesmo o amor da carne agora fez-se,
dentro de mim, sobejo à longa festa.
Meu espírito, vês, já açambarca
a matéria que sou. Já o que resta
é o homem em sua solitária barca.

        De Como Aquela Montanha Sossegada (2015/2017)



DAS COISAS MEMORÁVEIS

Um dia o mundo inteiro vai ser memória.
Tudo será memória.
As pessoas que vemos transitar naquela rua,
as gentis ou as sábias, ou as más, todas,
        todas.
E o mendigo que passa sem o cão,
o ginasta, a mãe, o bobo, o cético, a turista.
Deus, inclusive, regendo o fim das coisas
memoráveis, também será memória. Deus
e os pardais.
E os grandes esqueletos do Museu Britânico.
Todo sofrimento será memória. Eu, sentado aqui,
serei só estes versos que dizem haver um eu
        sentado aqui.
                             31/05/1999

        De Pequenos Assombros (1998/2000)






Chico Buarque: “Construção” (Chico Buarque)
Clique na imagem para assistir ao videoclipe


• Chico Buarque

CONSTRUÇÃO

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado

     (Composição: Chico Buarque - 1971)






Chico Buarque: “Iracema Voou” (Chico Buarque)
Clique na imagem para ver o videoclipe


IRACEMA VOOU

Iracema voou
Para a América
Leva roupa de lã
E anda lépida
Vê um filme de quando em vez
Não domina o idioma inglês
Lava chão numa casa de chá
Tem saído ao luar
Com um mímico
Ambiciona estudar
Canto lírico
Não dá mole pra polícia
Se puder, vai ficando por lá
Tem saudade do Ceará
Mas não muita
Uns dias, afoita
Me liga a cobrar:
— É Iracema da América

     (Composição: Chico Buarque - 1998)






Mônica Salmaso: “A História de Lily Braun” (Edu Lobo/Chico Buarque)
- Clique na imagem para ver o videoclipe


A HISTÓRIA DE LILY BRAUN

Como num romance
O homem dos meus sonhos
Me apareceu no dancing
Era mais um
Só que num relance
Os seus olhos me chuparam
Feito um zoom

Ele me comia
Com aqueles olhos
De comer fotografia
Eu disse cheese
E de close em close
Fui perdendo a pose
E até sorri, feliz

E voltou
Me ofereceu um drinque
Me chamou de anjo azul
Minha visão
Foi desde então ficando flou

Como no cinema
Me mandava às vezes
Uma rosa e um poema
Focos de luz
Eu, feito uma gema
Me desmilinguindo toda
Ao som do blues

Abusou do scotch
Disse que meu corpo
Era só dele aquela noite
Eu disse please
Xale no decote
Disparei com as faces
Rubras e febris

E voltou
No derradeiro show
Com dez poemas e um buquê
Eu disse adeus
Já vou com os meus
Numa turnê

Como amar esposa
Disse ele que agora
Só me amava como esposa
Não como star
Me amassou as rosas
Me queimou as fotos
Me beijou no altar

Nunca mais romance
Nunca mais cinema
Nunca mais drinque no dancing
Nunca mais cheese
Nunca uma espelunca
Uma rosa nunca
Nunca mais feliz

     (Composição: Edu Lobo / Chico Buarque - 1983)






Chico Buarque: “Sinhá” (João Bosco/Chico Buarque)
Clique na imagem para ver o videoclipe


SINHÁ

Se a dona se banhou
Eu não estava lá
Por Deus Nosso Senhor
Eu não olhei Sinhá
Estava lá na roça
Sou de olhar ninguém
Não tenho mais cobiça
Nem enxergo bem

Pra que me pôr no tronco
Pra que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz

Eu só cheguei no açude
Atrás da sabiá
Olhava o arvoredo
Eu não olhei Sinhá
Se a dona se despiu
Eu já andava além
Estava na moenda
Estava pra Xerém

Por que talhar meu corpo
Eu não olhei Sinhá
Pra que que vosmincê
Meus olhos vai furar
Eu choro em iorubá
Mas oro por Jesus
Pra que que vassuncê
Me tira a luz

E assim vai se encerrar
O conto de um cantor
Com voz do pelourinho
E ares de senhor
Cantor atormentado
Herdeiro sarará
Do nome e do renome
De um feroz senhor de engenho
E das mandingas de um escravo
Que no engenho enfeitiçou Sinhá

     (Composição: João Bosco / Chico Buarque - 2011)







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Carlos Machado, 2024



• Antonio Brasileiro
   in Poesia Completa - Volume I e Volume II
   Mondrongo, Itabuna-BA, 2021/2022
• Chico Buarque
   Letras conforme transcrições no site
   chicobuarque.com.br
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* Fernando Pessoa (Bernardo Soares)
  in O Livro do Desassossego (1982)
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* Imagens: quadros do pintor espanhol Pablo Picasso (1881–1973)