Número 534 - Ano 22

Salvador, quarta-feira, 17 de julho de 2024

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«Aquele rio / está na memória / como um cão vivo / dentro de uma sala.» (João Cabral de Melo Neto) *

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Henrique Augusto Chaudon
Henrique Augusto Chaudon



Amigas e amigos,

O poeta Henrique Augusto Chaudon (Niterói, 1955) esteve aqui, pela primeira vez em março de 2012, na edição n. 276. Agora, ele retorna ao poesia.​net, trazido pelo lançamento do livro Sobre Vida (edição do autor, 2024).

Poeta de um lirismo suave e contemplativo, o autor compila neste Sobre Vida poemas escritos em três períodos: 1976-1982, 1983-2005 e 2006-2023. São textos, portanto, de toda a sua experiência de produção poética.

Henrique Augusto Chaudon estreou em 1977 com o livro Confissões a Baco e Outros Poemas. Publicou, depois, Vento (1982); A Terceira Gaveta e Poemas Anteriores (1994); e Poemas (2005).

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Para esta edição selecionei seis poemas de Sobre Vida. O primeiro, “Despertar”, oferece uma boa ideia da poesia de Chaudon. Discreta, contemplativa, próxima à natureza. “Quando os olhos se abriram na manhã / ele viu réstias de luz / sentiu o vento leve panejando as cortinas. / Não sabia onde estava”.

Segue-se o poema “Procissões”. Mais uma vez, o clima é de observação dos movimentos naturais. O silêncio, os grilos, as estrelas. “No alto / estrelas antiquíssimas brilham. / Elas não se cansam de assistir / à longa procissão dos homens?”

Em “Um Quadro Inacabado”, o narrador se dirige a uma bailarina, imagem que o pintor esboçou, porém deixou a meio caminho. “Que danças recordas, verde bailarina / Por que te quedas estática e distante?”.

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O próximo texto, “Poética”, é um poema em prosa. “A poesia é a pátria da palavra, que é a pátria do humano”. Mas o que é pátria? “Pátria é quando somos livres, é onde os passos adquirem um sentido”. Observe-se que o poeta remete a ideia de pátria não exatamente para um lugar, mas para um cruzamento de tempo e espaço: “quando somos livres” e “onde os passos adquirem um sentido”.

Vem a seguir “Economia”, um metatexto, que descreve um processo malogrado de escrever um poema. A emoção se instala, mas o intuito inicial não se concretiza. O poeta, então, desvia-se para a leitura de um livro.

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No último poema, “Balancete”, o narrador, num ambiente praieiro (“corpos esguios, bronzeados / quase desnudos à beira-mar”), faz uma avaliação de seu tempo de vida, recorrendo às “algas da memória”. Termina assistindo à passagem do tempo, um “trem / carrancudo / indiferente”, que passa “mais depressa, mais depressa, mais depressa”. Um balancete à beira-mar.

Não é a toa que, no prefácio de Sobre Vida, o poeta e professor Jayro José Xavier afirma que a “genuinidade, ou autenticidade, ou sinceridade, como queiram, é virtude que não falta à poesia de Henrique Augusto Chaudon. Ela está presente em seus livros anteriores. E, tanto quanto nesses, mantém-se presente aqui, neste seu Sobre Vida”.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Balancete à beira-mar

• Henrique Augusto Chaudon


              



Chad Knight - Renovação
Chad Knight, escultor digital estadunidense, Renovação


DESPERTAR

Quando os olhos se abriram na manhã
ele viu réstias de luz
sentiu o vento leve panejando as cortinas.
Não sabia onde estava.
Nada em volta era familiar
nada chegava do dia anterior.
Deitado ficou
sem lembranças, sem nada pensar.
Apenas um vivente acordando
de um sono sem sonhos de cem anos.
O sol, o vento
as cortinas na janela...
Uma nova aurora
dia qualquer, qualquer lugar.

PROCISSÕES

Dentro e fora
silêncio dos homens.
Apenas os grilos
tocam os reco-recos
insistentemente.
No alto
estrelas antiquíssimas brilham.
Elas não se cansam de assistir
à longa procissão dos homens?
Não se cansam os homens de assistir
à incontável procissão de estrelas?
A noite e os grilos
não respondem.
Ouço em meus recantos
a recorrente procissão
do reco-reco das paixões
esperanças e desilusões.



Chad Knight - Meta E1
Chad Knight, Meta E1


UM QUADRO INACABADO

Pequena bailarina verde sem mãos
que olhar tão triste tens...
Onde buscas tua paisagem ou palco?
Que pano cedo caiu
entre ti e o mundo
para mirares o vazio assim?
Que danças recordas, verde bailarina
Por que te quedas estática e distante?
Não choras no entanto
nem mágoa vejo em teu olhar.
Apenas
na sombra de tuas pupilas
dança um vulto branco
ao longe
e esmaece devagar.

POÉTICA

A palavra é a pátria do humano. Com ela respiramos, nos movemos, congregamos, repartimos; com ela nascemos para a plena humanidade. Não há recanto interior ou exterior isento da palavra ou a ela refratável.

A poesia é a pátria da palavra. Debruçar-se sobre as altas margens desse rio que corre desde o início dos tempos, sempre o mesmo e sempre outro, é procurar um rosto. Pois é nesse espelho imemorial — o poema — onde se guardam e se refletem nossas mais fundas identidades. Aí vamos buscar, repetidamente, incansavelmente, o alento, a dicção.

A poesia é a pátria da palavra, que é a pátria do humano. Pátria é quando somos livres, é onde os passos adquirem um sentido. Um tempo onde tudo está nascendo, renascendo, quando descobrimos o mesmo velho mundo com os olhos da curiosidade original.

No poema, tempo e espaço da possível verdade, podemos respirar plenamente: seio vasto, farto e inesgotável.

No poema a palavra atinge sua plenitude, a intensidade primordial: o olhar da criança voa da flor ao chafariz e o milagre se derrama: ‘ága’.




Chad Knight - Ivy
Chad Knight, Hera


ECONOMIA

Não poucas vezes
sentindo a aproximação do poema
a respiração alterada
interrompo o que faço
rabisco afoito as imagens 
como quem furta um beijo
nos lábios desejados.
Muitas outras vezes
apenas busco dentre meus livros
o mais reverendo
e sento-me então a boa luz.
Página por página
cresce em mim uma certeza:
haver poupado um bocado de papel
tinta
e frustração. 

BALANCETE

Pleno verão:
corpos esguios, bronzeados
quase desnudos à beira-mar.
Tempo de lançar redes.
Tempo de conhecer
aprender
semear
colher talvez
uma seara.
Muitos verões já se foram.
As estações passaram, passaram
e o trem do tempo não para.
Agora nas redes
as algas da memória.
Rever livros, velhas fotografias
papéis.
Deve e Haver
do que foi feito
negligenciado, abandonado.
Inútil contabilidade.
E o trem
carrancudo
indiferente passa
mais depressa, mais depressa, mais depressa...




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Carlos Machado, 2024



 • Henrique Augusto Chaudon
    in Sobre Vida
    Edição do Autor, 2024
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* João Cabral de Melo Neto, "O Cão sem Plumas" (1950)
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* Imagens: esculturas digitais de Chad Knight (1976-), estadunidense