Número 535 - Ano 22

Salvador, quarta-feira, 31 de julho de 2024

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«Uns expiram sobre cruzes, / outros, buscando-se no espelho.» (Cecília Meireles) *

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Quatro Poetas
Ronaldo Costa Fernandes; Donizete Galvão; Myriam Fraga; Alberto da Cunha Melo



Amigas e amigos,

Os quatro poetas desta edição já são conhecidos de quem acompanha o poesia.​net. São eles o maranhense Ronaldo Costa Fernandes; o mineiro Donizete Galvão (1955-2014); a baiana Myriam Fraga (1937-2016); e, por fim, o pernambucano Alberto da Cunha Melo (1942-2007). Este boletim é uma pequena revisitação de poemas desses autores já publicados aqui.

Mas como esses quatro poetas se juntaram neste boletim? Para começo de conversa, eu não tinha à mão nenhum autor pronto para figurar nesta edição. Resolvi então recorrer àquelas velhas prestidigitações matemáticas que já usei aqui algumas vezes. Sorteei um número inicial de boletim, que caiu em 263 (Ronaldo Costa Fernandes). Em seguida, montei uma progressão geométrica de razão 1,15.

Assim, com aproximações, obtive os outros três autores: 302 (Donizete Galvão); 347 (Myriam Fraga); e, por fim, 399 (Alberto da Cunha Melo). Mais um detalhe: decidi incluir na presente edição dois poemas de cada autor selecionado. No caso de Alberto da Cunha Melo, tomei a licença poética de buscar o segundo poema não no boletim selecionado, mas em outro, o 195.

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Passemos aos poemas de Ronaldo Costa Fernandes. O primeiro é “Hopper”, uma bela digressão sobre a obra do clássico pintor estadunidense Edward Hopper (1882-1967). O poeta começa com a negação de uma ideia estabelecida: a de que os quadros do artista retratam a solidão dos personagens. “Aquele casal na lanchonete,/ as moças no quarto/ ou no vagão de trem/ estão imobilizados de vida”. O poeta termina concluindo que, na verdade, as figuras nos quadros de Hopper somos nós.

O outro poema selecionado de Costa Fernandes é “Lamento do Menino Triste”, um texto curto de apenas sete versos. Quem fala é um garoto, que se dedica a comparar propriedades físicas do azeite e da água, quando colocados num frasco.

Os dois versos finais são um apelo fundo e doído: “Ó mãe, faz permanecer em mim a água da alegria/ e me livra do azeite do desengano”. Quem dera pudéssemos varrer definitivamente de nossas vidas o gosto amargo desse azeite. Os dois poemas de Costa Fernandes estão em seu livro A Máquina das Mãos (7Letras, 2009).

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Vêm agora os poemas de Donizete Galvão. São dois dos textos mais conhecidos e celebrados do autor. Em “Escoiceados”, um poema de fundo autobiográfico, o poeta — menino criado em sítio — trabalha com elevada dose de ironia. Relata a queda do lombo de um burro que o pai e ele um dia experimentaram.

Como diz o ditado popular, além da queda, levaram coices do burro Ligeiro, que era “sistemático, / cheio de refugos”. E conclui: “Meu pai e eu./ Os dois/ nunca subimos/ na vida”. É incrível como o poeta consegue transformar um episódio comum da vida no campo numa conclusão existencial aplicada a duas gerações. As má-criações de Ligeiro tornaram-se tão icônicas que este poema, ricamente ilustrado, já se transformou num livro independente, ricamente ilustrado, publicado em 2014.

O outro poema do autor é “Visita”, um texto arrepiante em que o narrador, com muita calma, medita sobre a própria morte: “Que ela chegue / sem clarins ou trombetas, / entre como facho de luz / pelas gretas da janela / e atravesse o quarto / na sua claridade”.

“Escoiceados” apareceu originalmente no livro Ruminações (1999). “Visita”, por sua vez, vem da coletânea Mundo Mudo (2003). Toda a obra do saudoso poeta mineiro foi compilada recentemente em Poesia Reunida (Círculo de Poemas, 2023).

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Vamos aos poemas de Myriam Fraga. O primeiro, “Ars Poetica”, começa com uma afirmação nada trivial: “Poesia é coisa / De mulheres”. Mas a poeta sustenta sua ideia. Diz que a poesia, sempre no feminino, é “Uma alquimia de fetos / Um lento porejar / De venenos sob a pele”.

E mais ainda: “Poesia como antojos, / Como um ventre crescendo, / A pele esticada / De úteros estalando”. Quem ousa dizer que discorda de um lirismo tão forte e incisivo, com marcas de sangue, suor e febre? E principalmente com fortes indícios da gestação de um novo ser? Quem ousa?

O outro poema escolhido de Myriam Fraga é “Possessão”. Ao mesmo tempo doce e brutal, este texto descreve a criação poética como a dominação do corpo e do espírito do poeta de forma similar ao que acontece com praticantes de religiões de matriz africana ao receberem uma entidade. Diz a poeta: “O poema fez de mim / O seu cavalo; / Um arrepio no dorso, / Um calafrio, / Uma dança de espelhos / E de espadas”.

Ambos os poemas de Myriam Fraga foram publicados originalmente na coletânea Femina (Fundação Casa de Jorge Amado, 1996). Fazem parte também da Poesia Reunida (2008) da autora. Esse livro, que contém substancial parte da obra dessa poeta baiana, está disponível para download gratuito no site dedicado a Myriam Fraga: myriamfraga.com.br

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Chegamos, agora, ao nosso último poeta, o pernambucano Alberto da Cunha Melo. Seu primeiro poema é “Metralhadora Thompson ou Morte ‘T’”. O texto discorre sobre uma marca de metralhadoras. Conforme a Wikipédia, trata-se na verdade de uma submetralhadora ou pistola-metralhadora (não procurei saber qual a diferença), muito usada nos EUA tanto entre policiais como entre mafiosos e gângsteres, inclusive o célebre Al Capone (1899-1947).

Para o poeta, essa metralhadora, “Pesada como uma criança / gorda, filha do fabricante, / não para de gritar enquanto / não devora o pente de balas”. O tom é sempre de cáustica ironia. Lembra, por exemplo, que o famoso marginal carioca Mineirinho “morreu com ela”, a Thompson (em 1962). Elevar esse instrumento mortífero a tema de poesia constitui um dos estalos geniais de Alberto da Cunha Melo.

Em “Relógio de Ponto”, o segundo poema de Cunha Melo, destaca-se o quarteto inicial: “Tudo que levamos a sério / torna-se amargo. Assim os jogos, / a poesia, todos os pássaros, / mais do que tudo: todo o amor”. A rigor, somente este trecho já valeria um poema. Mas este relógio nos oferece muito mais.

Além do lirismo maiúsculo que perpassa todo o texto (exemplo: “atravessaremos os córregos / cheios de areia, após as chuvas”), o poema ainda nos brinda com uma reluzente chave de ouro: “e lavaremos as pupilas / cegas com o verniz das estrelas”. Tomara todo relógio de ponto, desagradável instrumento de controle do trabalho, tivesse um décimo do prazer estético deste poema.

Toda a obra poética de Alberto da Cunha Melo está presente em sua Poesia Completa, publicada pela Record em 2017.

Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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ERRATA

Na edição anterior (poesia.​net n. 534, cometi dois equívocos. 1. Em meus comentários, deixei de citar o livro Poemas (2005), de Henrique Augusto Chaudon; e 2. Na transcrição do poema “Um Quadro Inacabado”, o verso “Onde buscas tua paisagem ou palco?” teve trocado o sinal de interrogação por um ponto-e-vírgula. As correções foram feitas no site, repositório de todos os boletins.

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Oito poemas revisitados

• Ronaldo Costa Fernandes
• Donizete Galvão  • Myriam Fraga
• Alberto da Cunha Melo


              



Akzhana Abdaliyeva - Girlfriends
Akzhana Abdaliyeva, pintora cazaque, Amigas


• Ronaldo Costa Fernandes

HOPPER

Em Hopper, não há a solidão que todos dizem.

Aquele casal na lanchonete,
as moças no quarto
ou no vagão de trem
estão imobilizados de vida
— de vida tão grave
que nada escapa (como nos buracos negros)
de seu campo de gravidade.

Ali estão os autômatos de Hopper
em sua fantástica viagem em torno de si mesmo.

Não é a vida americana
que é criticada.
O que nos desnorteia em Hopper
— e nos fascina —
é que nos vemos na lanchonete,
na parada de ônibus ou no vagão de trem.
Estamos imobilizados — hopperianos —
em têmpera e colorido,
fixos na tela do tempo,
e, irremediavelmente, presos a nós mesmos,
a vida como um quadro americano
do qual não podemos escapar.

LAMENTO DO MENINO TRISTE

O azeite ainda se agarra
às paredes do frasco depois de esvaziado.
A água, leve, esvazia-se rápido,
às vezes até evapora, e não deixa resíduo,
nada se gruda à parede do frasco.
Ó mãe, faz permanecer em mim a água da alegria
e me livra do azeite do desengano.



Akzhana Abdaliyeva - Flowers
Akzhana Abdaliyeva, Flores


• Donizete Galvão

ESCOICEADOS

Meu pai e eu 
nunca subimos 
num alazão 
que galopasse 
ao vento. 
Tínhamos 
um burro 
cinza malhado: 
o Ligeiro. 
Foi apanhado 
de um conhecido 
por ninharia. 
Chegou com fama 
de sistemático, 
cheio de refugos.
De trote tão curto 
que dava dor 
nas costelas. 
De certa vez, 
caímos do burro. 
Meu pai e eu. 
Eu e meu pai. 
Embolados. 
Joelhos esfolados 
no pedregulho. 
Levamos 
bons coices. 
Meu pai e eu. 
Os dois
nunca subimos 
na vida.

VISITA

Que ela chegue
sem clarins ou trombetas,
entre como facho de luz
pelas gretas da janela
e atravesse o quarto
na sua claridade.

Que ela chegue
inesperada,
como a chuva
na tarde calorenta
e faça subir o odor
de poeira molhada.

Que ela chegue
e se deite ao meu lado,
sem que a perceba.
Que me lave
com água de fonte
e me cubra
com o bálsamo branco
do silêncio.



Akzhana Abdaliyeva - Presente
Akzhana Abdaliyeva, Presente


• Myriam Fraga

ARS POETICA

Poesia é coisa
De mulheres.
Um serviço usual,
Reacender de fogos.
Nas esquinas da morte,
Enterrei a gorda
Placenta enxundiosa

E caminhei serena
Sobre as brasas
Até o lado de lá
Onde o demônio habita.

Poesia é sempre assim:
Uma alquimia de fetos,
Um lento porejar
De venenos sob a pele.

Poesia é a arte
Da rapina.
Não a caça, propriamente,
Mas sempre nas mãos
Um lampejo de sangue.

Em vão,
Procuro meu destino:
No pássaro esquartejado
A escritura das vísceras.

Poesia como antojos,
Como um ventre crescendo,
A pele esticada
De úteros estalando.

Poesia é esta paixão
Delicada e perversa,
Esta umidade perolada
A escorrer de meu corpo,

Empapando-me as roupas
Como uma água de febre.

POSSESSÃO

O poema me tocou
Com sua graça,
Com suas patas de pluma,
Com seu hálito
De brisa perfumada.

O poema fez de mim
O seu cavalo;
Um arrepio no dorso,
Um calafrio,
Uma dança de espelhos
E de espadas.

De repente, sem aviso,
O poema como um raio
— Elegbá, pombajira! —
Me tocou com sua graça,
Aceso como chicote,
Certeiro como pedrada.
                    Salvador, abril, 1995


Akzhana Abdaliyeva - Big eyed pricess
Chad Kninght, Princesa dos olhos grandes


• Alberto da Cunha Melo

METRALHADORA THOMPSON OU MORTE "T"

Quando há tempos deixou de ser
a simples marca de uma arma
tornou-se a marca de uma morte:
a morte Thompson, morte “T”.

Pesada como uma criança
gorda, filha do fabricante,
não para de gritar enquanto
não devora o pente de balas.

Mineirinho morreu com ela
embrulhado em seu barracão
(se eu usasse rima talvez
fizesse disso uma canção).

A “velha Thompson” consegue,
quando a distância é favorável,
ensinar de longe um poeta
a repetir-se sem cansar.

Esta cantora diferente
canta para homens deitados:
quem se levanta para ouvi-la
não ouve a próxima audição.

    

RELÓGIO DE PONTO

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.

Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará o nosso cartão.

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas com o verniz das estrelas.




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Carlos Machado, 2024



 • Ronaldo Costa Fernandes
    in A Máquina das Mãos
    7Letras, Rio de Janeiro, 2009
 • Donizete Galvão
    in Poesia Reunida
    Círculo de Poemas, São Paulo, 2023
 • Myriam Fraga
    in Poesia Reunida
    Assembleia Leg. do Est. BA, Salvador, 2008
 • Alberto da Cunha Melo
    in Poesia Completa
    Record, 1a. ed., Rio de Janeiro, 2017
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* João Cabral de Melo Neto, "O Cão sem Plumas" (1950)
______________
* Imagens: obras da pintora cazaque Akzhana Abdaliyeva (1975-)