Número 536 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 14 de agosto de 2024

poesia.net header

«A Dor humana busca os amplos horizontes,/ E tem marés, de fel, como um sinistro mar!» (Cesário Verde) *

Compartilhe pelo WhatsApp

facebook  facebook 
Ana Cecília de Sousa Bastos
Ana Cecília de Sousa Bastos


Amigas e amigos,

A poeta baiana Ana Cecília de Sousa Bastos já é conhecida dos leitores deste boletim. Ela esteve aqui na edição n. 93, de 2004, e também na edição n. 478, de 2021.

Agora ela retorna, trazida pelo seu livro mais recente, Contemplação do Mar (Confraria do Vento, 2022). Nessa coletânea, a poeta, baiana de Salvador, escolheu o mar como tema central. E, criativamente, esse mar se espraia para muitas outras áreas, que vão desde o corpo e os sentimentos do eu poético até a cidade e seus habitantes.

•o•

A poesia de Ana Cecília é marcada pelo signo da delicadeza. Lembra conjuntos de objetos articulados, nos quais as ideias se equilibram em fios finíssimos e dão a impressão de que não serão capazes de resistir ao primeiro vento mais nervoso.

Mas, na verdade, é tudo artimanha! Nessa delicadeza, nessa fragilidade aparente, reside toda a força, toda a robustez dos versos da poeta. A rigor, seus poemas são artefatos imunes a ventos e tempestades. E ela, discreta e sem alarde, corteja o perigo. Contemplar o mar sugere (aos distraídos) uma tarefa singela, uma atitude de quem quem deseja permanecer parado com os olhos perdidos nas ondas e no horizonte curvo.

Contudo, o que se encontra em Contemplação do Mar não é exatamente um clima de estática contemplativa. A poeta, no livro, exibe plena consciência dos mistérios do oceano, suas maravilhas e violências.

•o•

Veja-se, por exemplo, o poema “Oceano”. A abertura apresenta uma comparação entre o mar e os seres humanos, imediatamente resumidos à pessoa do eu poético. “Somos oceano nas extremidades. / Contemplo minhas unhas, / conchas do mar”. E toda a sequência do poema dedica-se a traçar outros paralelos entre modos de ser da humanidade e comportamentos do mar.

No poema seguinte, “Posse”, a aproximação se faz entre a vida nas grandes cidades e os mistérios do mar. A cidade é “O oceano a nos envolver, / envoltório de ruas acanhadas e eternas”.

Em “Alagados”, a poeta trabalha com choques de opostos. De um lado, a beleza do mar e a “canoa singrando o mar / que sangra”. Singrar e sangrar. Porque, nas favelas que seguem o estilo de Alagados (habitações precárias plantadas em palafitas sobre a maré), a beleza do mar se transforma em tristeza.

Vem, por fim, o poema “Coração de Areia”, uma bela reflexão filosófico-existencial. E o mar, tema explícito de todo o livro, aparece aqui como infinita fonte de mistérios. “Areia é minério talvez eterno. // Este grão que penso reter nas mãos / amanhã mesmo o oceano levará. / Nunca saberei de que silício ou cecília / é feito”.

•o•

Ana Cecília de Sousa Bastos (Salvador, 1954) é psicóloga e professora aposentada da Universidade Federal da Bahia e da Universidade Católica de Salvador. Em poesia, publicou Uma Vaga Lembrança do Tempo (Prêmio Copene, 1999); A Impossível Transcrição (1ª ed., 2007; 2ª ed. ampliada, 2021); Escritos Extraídos do Silêncio (2015); e Contemplação do Mar (Confraria do Vento, 2022).

Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


•o•

Visite o poesia.net no Facebook e no Instagram.

facebook  facebook 




Contemplação do mar


• Ana Cecília de Sousa Bastos


              



modigliani-busto.de.mulher-1919
Amedeo Modigliani, italiano, Busto de mulher (1919)


OCEANO

Somos oceano nas extremidades.
Contemplo minhas unhas,
conchas do mar.
Tanto brilham essas partes!
Fecham extremidades,
ilusória completude.

Somos oceano,
peixe e cautela,
flutuação e peso em luta na água,
correnteza e vida,
ave e liberdade.
E nada quero dizer do amor.

Alheio-me, abstraio-me,
ânsia e vertigem,
sonho profundidades inauditas,
mergulho.

POSSE

Dias em que somos acometidos pela cidade.

A cidade é soberana
e nós,
involuntários na paisagem.

O mar,
sentimento do que é talássico,
báratro, abismo.
O oceano a nos envolver,
envoltório de ruas acanhadas e eternas.

Dias em que a cidade se sobrepõe à rotina
e nada mais somos,
senão seus viventes.



modigliani-retrato.de.beatrice.hastin-1916
Amedeo Modigliani, Retrato de Beatice Hastin (1916)


ALAGADOS

Pode beleza tanta?
Canoa singrando o mar
que sangra.

Mar que sangra.
	      Palafitas.
Mar que sangra.
	      Petróleo
Mar que, os homens,
	      sangra.

Pode tristeza tanta?

CORAÇÃO DE AREIA

Teria escrito mil vezes teu nome na areia,
não fosse teu nome matéria em que meu coração se dissolve.
Mistério infinito do mar-espelho.

Amar é espelho do infinito.
Amar é mistério de areia.

Areia é matéria fluida, efêmera.
Areia é minério talvez eterno.

Este grão que penso reter nas mãos
amanhã mesmo o oceano levará.
Nunca saberei de que silício ou cecília
é feito.

Não saberei onde se quedará meu coração de areia:
em doces praias ou voragens,
rochas ou abismos.

Abismo sou agora, sem nome e sem pouso
E a matéria areia, fugaz e eterna,
dolorida e bela,
me consome.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
facebook.com/avepoesia
instagram.com/cmachado.poesia
Carlos Machado, 2024



• Ana Cecília de Sousa Bastos
   in Contemplação do mar
      Confraria do Vento, Rio de Janeiro, 2022
_____________
* Cesário Verde, "O Sentimento dum Ocidental" (1880)
______________
* Imagens: quadros do pintor italiano Amedeo Modlgliani (1884-1920)