Número 538 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 2 de outubro de 2024

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«Nenhuma presença é mais real que a falta.» (Myriam Fraga) *

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Hans Magnus Enzensberger
Hans Magnus Enzensberger, em 2006


Amigas e amigos,

Neste boletim o poeta em destaque é o alemão Hans Magnus Enzensberger (1929-2022), um dos nomes mais destacados da literatura contemporânea de seu país, autor apresentado como poeta, prosador, dramaturgo, ensaísta, tradutor e editor.

Enzensberger já era publicado no Brasil, mas sem muita reverberação no gênero poesia. Numa pesquisa, descobri que existe um livro de poemas dele, Eu falo dos que não falam, lançado em 1985 pela Editora Brasiliense/Instituto Goethe, com tradução de Kurt Scharf e Armindo Trevisan. Agora, acaba de sair pelo Círculo de Poemas novo título do autor alemão: Destinatário desconhecido - Uma antologia poética (1957-2023), traduzido por Daniel Arelli, que também fez a seleção dos poemas e escreveu o posfácio.

Os poemas desta edição foram extraídos dessa nova coletânea.

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Um dos traços característicos da poesia enzensbergeriana é a ironia. Não são poucas suas páginas carregadas de zombaria e sarcasmo. Exemplo disso é o poema “Para o manual de literatura do ensino médio”. Aí o eu poético se põe a aconselhar os jovens estudantes: “Não leia odes, meu filho, leia os horários dos trens: são mais exatos”. Curiosamente, em lugar de poesia, essa voz irônica recomenda leituras de resultados mais práticos.

As propostas corrosivas não param por aí. Mais adiante, a voz ensina que as encíclicas (documentos emitidos pelo papa) servem para “fazer fogo”, “e os manifestos, para embrulhar a manteiga e o sal / dos indefesos”. No final, propõe ao estudante “raiva e paciência”, com o objetivo de instilar “nos pulmões do poder / o pó fino e mortífero, moído / por aqueles que tanto puderam aprender / que são exatos, por você”.

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No próximo poema, “Visitas”, o nível de ironia não é menor. Agora, o poeta se detém a observar o comportamento de convidados a festas na casa de amigos. O texto é, na verdade, um pequeno catálogo de como as pessoas agem. Há, por exemplo, “As que sempre chegam tarde / As que desmarcam no último minuto / As que só vão dar uma passadinha”. Mas há outras mais desagradáveis: “As que sempre contam piadas de judeu / As que sempre sabem quem tem o que com quem / As que tomam uísque demais”.

Em “O novo homem”, um adulto observa o desenvolvimento de uma criança (“A cara do pai”), nela projetando a expectativa de que ali desponta, cheia de promessas, a geração do futuro, uma nova humanidade. No entanto, após numerosas peripécias, a conclusão não é tão animadora: “Então, enquanto / morremos aos poucos, // ele fica cada vez mais / parecido conosco”.

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Os donos da voz no próximo poema são “Os Ricos”. Na primeira estrofe, admitem que, depois de cada desastre, revelam-se “abundantes, abastados, abençoados”. Dizem também que os mais pobres “têm culpa de tudo”. E confessam: “chantageamos, expropriamos, saqueamos”, mas só quando não há outra alternativa.

O poema seguinte, “Middle class blues”, entoa um lamento da classe média: “Não podemos reclamar. / Temos trabalho a fazer. / Estamos de barriga cheia. / Comemos”. Vem, agora, o último poema da seleção, “Desarmonia preestabelecida”. Nesse texto o poeta mostra o caos da vida nas grandes cidades. Violências, agressões, ódios dirigidos não exatamente a inimigos, mas a pessoas que estão no mesmo barco. “Ah, todos nós temos / as mãos cheias de coisas por fazer. / Não há fim à vista”.

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Hans Magnus Enzensberger, alemão, nasceu em 1929. Poeta, prosador, ensaísta e tradutor e editor, publicou vários livros sob pseudônimos, como Andreas Thalmayr, Linda Quilt, Elisabeth Ambras e Serenus M. Brezengang. Em 1944, aos 15 anos de idade, foi recrutado para a milícia nazista Volkssturm, mas conseguiu desertar antes do final da Segunda Guerra Mundial.

Estudou literatura e filosofia e foi também professor universitário. Entre 1965 e 1975, foi membro do Grupo 47, que reunia autores e críticos alemães com o objetivo de revitalizar a literatura do pós-guerra.

Enzensberger morreu em Munique, aos 93 anos de idade, em 2022.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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LANÇAMENTO DUPLO

Trecho sujeito a neblina
• Leusa Araujo
Histórias de Desertos e Nascentes
• Leandro Carlos Esteves

Leusa e Leandro - Dois livrosSão dois livros de contos, de dois jornalistas e escritores. Leusa Araujo traz a público Trecho Sujeito a Neblina, que sai pela Editora Quelônio. Por sua vez, Leandro Carlos Esteves apresenta Histórias de Desertos e Nascentes, volume publicado pela Editora Letra Selvagem. No evento, trechos dos livros serão lidos pelos atores Ana Cecília Costa, Carol Badra e Eduardo Mossri.

Quando:
Sábado, 19/10/2024,
a partir das 11h

Onde:
Biblioteca Mário de Andrade
Rua da Consolação, 94
República
São Paulo, SP



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Manual de literatura


• Hans Magnus Enzensberger


              



Roman Zakrzewski - 2011-05
Roman Zakrzewski, pintor polonês, 2011-05 (2011)


PARA O MANUAL DE LITERATURA DO ENSINO MÉDIO

Não leia odes, meu filho, leia os horários dos trens:
são mais exatos. Desenrole os mapas náuticos
enquanto ainda é tempo. Fique atento, não cante.
Virá o dia em que voltarão a pregar listas
no portão e a pintar marcas no peito dos que dizem
não. Aprenda a passar incógnito, aprenda mais que
a mudar de bairro, de passaporte, de rosto.
Exercite a pequena traição,
a imunda salvação de cada dia. É para
fazer fogo que servem as encíclicas,
e os manifestos, para embrulhar a manteiga e o sal
dos indefesos. Raiva e paciência são necessárias
para soprar nos pulmões do poder
o pó fino e mortífero, moído
por aqueles que tanto puderam aprender,
que são exatos, por você.

VISITAS

As que sempre chegam tarde
As que desmarcam no último minuto
As que só vão dar uma passadinha
As que só foram convidadas porque nos convidaram antes
As que se chateiam por não terem sido convidadas
As que não foram convidadas, mas mesmo assim estão na porta
As que vêm cheias de restrições alimentares
As que vêm com plantas, bebês e são-bernardos
As vizinhas que não conseguem dormir por causa da música
As que sempre contam piadas de judeu
As que só tomam água mineral
As que já estão com os olhos fechando
As que se fotografam o tempo todo
As que precisam ir fumar na varanda
As que sempre sabem quem tem o que com quem
As que insistem que isso deve ficar entre nós
As que tomaram uísque demais
As que ainda precisam dar um pulinho em outro lugar
As que ficam até todo mundo ir embora
As que são bem-vindas mesmo quando não ligam antes
As que fazem falta porque estão debaixo da terra



Roman Zakrzewski - 1999-05
Roman Zakrzewski, 1999-05 (1999)


O NOVO HOMEM

Este novo homem
parece estranho.

Agradável
essa dessemelhança.

“A cara do pai.”
Tomara que não.

Ele trabalha duro,
faz barulho.

Não temos ideia
do que ele quer.

Respira, digere,
rasteja, geme.

Hesitante percebe
a duplicidade.

Escala palavras,
experimenta

gangorra, balanço,
ousadia, medo.

Um dia, mais esperto
do que nós, nos surpreende.

Então, enquanto
morremos aos poucos,

ele fica cada vez mais
parecido conosco.

OS RICOS

De onde é que continuam surgindo,
essas hordas opulentas! Depois de cada desastre
rastejam para fora das ruínas,
incólumes; escorregam através
de cada buraco de agulha,
abundantes, abastados, abençoados.

Os mais pobres. Ninguém gosta deles.
Carregam fardos pesados.
Nos insultam,
têm culpa de tudo,
não podem fazer nada,
devem partir.

Nós tentamos de tudo.
Pregamos para eles,
imploramos,
e só quando não havia alternativa é que
chantageamos, expropriamos, saqueamos.
Nós os deixamos sangrando
e os pregamos no muro.

Mas mal abaixamos as armas
e tomamos lugar em suas poltronas
constatamos, primeiro incrédulos,
depois respirando aliviados,
que ninguém é páreo para nós.
Sim, sim, a gente se acostuma com tudo.
Até a próxima.



Roman Zakrzewski - 2006-05
Roman Zakrzewski, 2006-05 (2006)


MIDDLE CLASS BLUES

Não podemos reclamar.
Temos trabalho a fazer.
Estamos de barriga cheia.
Comemos.

A grama cresce,
cresce o PIB,
a unha do dedo,
o passado.

As ruas estão vazias.
Os contratos estão fechados.
As sirenes estão caladas.
Isso vai passar.

Os mortos fizeram seu testamento.
A chuva deu uma trégua.
A guerra ainda não foi declarada.
Isso não tem pressa.

Comemos a grama.
Comemos o PIB.
Comemos as unhas.
Comemos o passado.

Não temos nada a esconder.
Não temos nada a perder.
Não temos nada a dizer.
Temos.

Deram corda no relógio.
Pagaram os boletos.
Lavaram os pratos.
O último ônibus está passando.

Vazio.

Não podemos reclamar.

O que estamos esperando?

DESARMONIA PREESTABELECIDA

Para cada um que quebra
a garrafa de cerveja na cabeça do imigrante,
um cirurgião de emergência
que sutura o crânio.
E vice-versa.

Para cada caça-minas
que arrisca sua pele,
um traficante de armas.
E vice-versa.

Para cada estuprador, uma mulher
com a peixeira na mão,
para cada assistente social, um neonazi,
para cada um que ganha mais,
um fiscal da receita, para cada monstro,
uma suave Madona, e vice-versa.

Ah, todos nós temos
as mãos cheias de coisas por fazer.
Não há fim à vista.




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Carlos Machado, 2024


Foto: Mariusz Kubik-2006-CC BY 2.5


• Hans Magnus Enzensberger
   in Destinatário Desconhecido - Uma Antologia Poética (1957-2023)
   Seleção, tradução do alemão e posfácio: Daniel Arelli
   Círculo de Poemas, São Paulo, 2024
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* Myriam Fraga, "Calendário: Março", in Femina (1996)
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* Imagens: quadros do pintor polonês Roman Zakrzewski (1955-2014)