Número 539 - Ano 21

Salvador, quarta-feira, 16 de outubro de 2024

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«O que esperais de um Deus? / Ele espera dos homens que O mantenham vivo.» (Hilda Hilst) *

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Eucanaã Ferraz
Eucanaã Ferraz


Amigas e amigos,

O poeta e professor carioca Eucanaã Ferraz já esteve aqui no poesia.​net na edição n. 448, em julho de 2020. Aquele boletim baseou-se em dois livros do autor: Escuta, de 2015, e Sentimental, de 2012. Agora, voltamos à obra de Eucanaã Ferraz com poemas de seus dois livros mais recentes: Raio (2023) e Retratos com Erro (2019). Todos os títulos citados foram publicados pela Companhia das Letras.

No volume Raio, Eucanaã experimenta bastante com poemas em prosa. De um total de 58 poemas, 28 (se não errei nas contas) têm a forma de texto corrido. O primeiro, que é também a página de abertura do livro, é “Telescópio”, construído a partir de recordações da infância. “A televisão era em preto e branco. As geladeiras eram brancas e os telefones eram pretos”. Tudo se apresenta em linguagem direta, como nas redações do primário. Mas, para acentuar o tom nostálgico (e irônico), o poeta vai mais longe e cita a cantiga do rei trovador Dom Dinis: “Ai flores do verde pinho — onde perdi meu amigo?”

O próximo poema escolhido para a miniantologia ao lado é “Joalheria”. Nele o poeta se põe a questionar a acuidade do velho ditado popular “Vão-se os anéis e ficam os dedos”. Para ele, ocorre justamente o contrário: “Museus barracas de quinquilharias / antiquários estão abarrotados de anéis / sem dedos nenhuns — foram-se os dedos”.

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Em “A Canção do Cavaleiro”, um poema que adota o andamento das baladas épicas, o autor se envolve numa aventura metalinguística. O narrador começa: “Mandei selar meu cavalo / feito de sombra e de vento / exato para o deserto — / se lá houvesse uma estrada / que fosse dar no poema”.

O objetivo proposto é encontrar o poema. Contudo, o cavalo, meio irreal, é “feito de sombra e de vento”. Além disso, tudo é duvidoso: não é certo que no deserto a atravessar haveria uma estrada “que fosse dar no poema”. No final, desconsolado, o bardo conclui que o tal cavalo, selado e pronto para o embate, na verdade não existe.

“Perfil de Murilo Mendes” é o próximo texto. Nele Eucanaã se dedica a traçar um retrato “natural” do poeta juiz-forano. “Colarinho trinta e nove sua fruta / predileta é banana-prata gosta / de fazer e de receber visitas”. Ou então: “Escreve à mão e bem rapidamente / gosta de boi cavalo e Portinari”.

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“Veja Só” é outro exemplo extraído entre os poemas em prosa de Raio. Nele o eu poético é assumido por alguém bem-falante com uma linguagem cheia de expressões populares e taxativas. “Adverso e desgostoso digo não redondamente em áspero e bom som. Desconheço”. Mais: “Não e não. Em hipótese nenhuma. Nem por pensamento. Não e nões. Fora de questão”. Mas, ao fim e ao cabo, não se sabe qual o motivo de tantas e tão radicais negações.

Vem a seguir “Mágica”, o último poema da miniantologia, único extraído do livro Retratos com Erro. Confiante no poder lírico e encantatório da palavra, alguém pronuncia o vocábulo “amor” e espera que algo aconteça. Diz a palavra, e repete-a mais de uma vez, “diante de um rosto impossível / para que o amor existisse”. Infelizmente, o esperado prodígio não se realiza.

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Eucanaã Ferraz (Rio de Janeiro, 1961) é professor de literatura na UFRJ e também editor de livros e consultor em debates literários e exposições culturais. Seus livros de poesia são: Desassombro (7Letras, 2002); Rua do Mundo (2004); Cinemateca (2008); Sentimental (2012); Escuta (2015); Retratos com Erro (2019) e Raio (2023). Os seis últimos títulos foram publicados pela Companhia das Letras. O autor também escreve livros para crianças.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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ERRATA

Na edição do poesia.​net com o poeta Hans Magnus Enzensberger, cometi um erro primário: repeti o número da edição anterior. Portanto, para não deixar dúvidas, aquela é a edição n. 538. A versão do boletim mantida no site Alguma Poesia já foi corrigida.



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Os dedos se vão


• Eucanaã Ferraz


              



Matt Talbert - Amanda
Matt Talbert, pintor estadunidense, Amanda


TELESCÓPIO

As fotografias eram em preto e branco. Os filmes eram em preto e branco. A televisão era em preto e branco. As geladeiras eram brancas e os telefones eram pretos. Lá longe o azul da Prússia. Na escola o disco de Newton ensinava as leis da luz mas tudo o que aprendíamos era o mundo que girava depois do muro. Amei à primeira vista as estrelas amarelas na bandeira de Cabo Verde. Nomes assim: lápis-lazúli. Coisas espantosas como o rio Negro e o mar Vermelho. Ai flores do verde pinho — onde perdi meu amigo?


JOALHERIA

Nem é verdade que os anéis se vão
e os dedos ficam.

Museus barracas de quinquilharias
antiquários estão abarrotados de anéis
sem dedos nenhuns — foram-se os dedos.
Dedos custam caro — mas não duram muito.

Foram-se as luvas — vazias.
Ficou o nome — porta-luvas.

Os dedos dão adeus
e sobram estes aros

brilhando
sem ninguém e sem remorsos.



Matt Talbert - The Jazz Duo
Matt Talbert, Dueto de jazz


CANÇÃO DO CAVALEIRO

Mandei selar meu cavalo
feito de sombra e de vento
exato para o deserto —
se lá houvesse uma estrada
que fosse dar no poema.

Mandei selar meu cavalo
marinho talhado em água
na forma justa do aquário
onde os poemas cintilam —
mas longe de nossos olhos.

Na meia-noite às escuras
mandei selar meu cavalo
com labaredas altíssimas —
os poemas (há quem diga)
são de ferro e não se curvam.
Mandei selar meu cavalo
de barro de pau e corda
frágil pequeno ridículo —
esperançoso que um verso
por ele se enternecesse.

Em branco e papel — mais nada —
mandei selar meu cavalo
na medida do silêncio
com que esperar pelo tempo.
Meu cavalo não existe.

PERFIL DE MURILO MENDES

Altura um metro e oitenta e três sapato
quarenta e um tolera tudo menos
a vulgaridade não fuma nem
fumou é indiferente ao futebol.

Colarinho trinta e nove sua fruta
predileta é banana-prata gosta
de fazer e de receber visitas
é nervoso mas vive sob controle.

Nasceu em Juiz de Fora maio treze
antigamente achava que o mamão
lhe causava resfriados tocou piano
de ouvido quando — de cauda — menino.

Dorme cedo e acorda cedo responde
às cartas com atraso mas responde
em Roma tem saudades de Madri
mas em Madri tem saudades de Roma.

Escreve à mão e bem rapidamente
gosta de boi cavalo e Portinari
dá nomes a gravatas e vitrolas
das nove às dez da noite escuta música.

O seu prato favorito é tutu
à mineira e nas cidades antigas
de Minas passa muitas temporadas
ouvindo Bach como se ouvisse Mozart.

É sócio fundador da Sociedade
dos Três Reis Magos e acha que o Brasil
perdeu o sentido da banana vendo
nisso um dos indícios de sua decadência.

Católico romano relaxado
prefere morrer a treze de agosto
no setenta e cinco do novecento
mas só morrerá quando Deus quiser.



Matt Talbert - Dead of night
Matt Talbert, Na calada da noite


VEJA SÓ

Adverso e desgostoso digo não redondamente em áspero e bom som. Desconheço. Desminto e nem sequer. Denego nego contradigo viro a página rasgo a página queimo. Longe de mim. Nem assim nem assado nem pensar. Não tenho estômago para. Me inclua fora desse enredo. Cansei. Quizila. Sem chance. Não e não. Em hipótese nenhuma. Nem por pensamento. Não e nões. Fora de questão. Nens e nães. Atravesso inteiro para o outro lado — lá onde a recusa é nunca — e atiro aos cães o que sofri. Tire seu cavalo da chuva. A chuva lava meu rosto.


MÁGICA

Disse amor diante de um rosto impassível
para que o amor existisse.

Disse e era ridículo que o repetisse
mas outra vez e mais uma vez

diante de um rosto impossível
para que o amor existisse

disse: amor — perfeitamente em vão
vejam bem senhoras e senhores

como esperasse que a ervilha
na vagem amadurecesse à luz de um
vocábulo:

dia

— apenas porque o disse.




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Carlos Machado, 2024



 Eucanaã Ferraz
   • “Telescópio”, “Joalheria”, “Canção do Cavaleiro”,
   “Perfil de Murilo Mendes” e “Veja Só”
   in Raio
   Companhia das Letras, São Paulo, 2023
   • “Mágica”
   in Retratos com Erro
   Companhia das Letras, São Paulo, 2019
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* Hilda Hilst, "Passeio", in Exercícios (2002)
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* Imagens: quadros do pintor estadunidense Matt Talbert (1982-)