Número 5

03/09/2013

«Ali pelo oitavo chope, chegamos à conclusão de que todos os problemas eram insolúveis.» (Cyro dos Anjos)
 

Mario Quintana (1906-1994)
   Mario Quintana

Caros,

O poeta gaúcho Mario Quintana (1906-1994) desenvolveu uma forma curiosa de divulgar suas concepções poéticas. Talvez inspirado em algum aspirante a poeta que lhe fez perguntas sobre o ato de escrever poesia, ele produziu cartas como se desse resposta a tais perguntas.

Essas cartas, ou anotações sobre o tema, aparecem em vários de seus livros, porém as duas principais estão em Caderno H, livro de 1973 que resultou na reunião de textos publicados em jornal. Nelas encontram-se preciosas pistas sobre como Quintana escrevia.

Aproveite.

Carlos Machado


 

Nota: Quintana refere-se jocosamente a Filinto Elísio (1734-1819), poeta português, classificado como neoclássico arcádico. Seu nome verdadeiro era Francisco Manuel do Nascimento. Padre, foi perseguido pela Inquisição, acusado de ler livros racionalistas. Em 1778, refugiou-se na França, onde morreu.

 



 

A poesia segundo Mario Quintana

 


• CARTA

Meu caro poeta,

Por um lado foi bom que me tivesses pedido resposta urgente, senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não possuo o dom discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive de escrever em prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola traçada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção.

Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje que os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio. Aliás, a posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na posteridade é tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio Ramsés, se fores palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A única contemporaneidade que existe é a da contingência política e social, porque estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos, aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? — perguntarás. E eu te respondo que sobras tu.

Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano. O Profeta diz a todos: “eu vos trago a verdade”, enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: “eu te trago a minha verdade.” E o poeta, quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e da época, só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja tão difícil ser assim autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócrifos!

Meu poeta, se estas linhas estão te aborrecendo é porque és poeta mesmo. Modéstia à parte, as digressões sobre poesia sempre me causaram tédio e perplexidade. A culpa é tua, que me pediste conselho e me colocas na insustentável situação em que me vejo quando essas meninas dos colégios vêm (por inocência ou maldade dos professores) fazer pesquisas com perguntas assim: “O que é poesia? Por que se tornou poeta? Como escreve os seus poemas?”. A poesia é dessas coisas que a gente faz mas não diz.

A poesia é um fato consumado, não se discute; perguntas-me, no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves ler. Eu tinha vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles fazem. Só te posso dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o inesperado da sua associação. (Em vez de associações de idéias, associações de imagem; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia moderna.)

Não lhes oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel. Guardo o papel, até que um dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de memória é uma bênção nestes casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto logo o que estava demais ou o que era falso. Coisas que pareciam tão bonitinhas, mas que eram puro enfeite, coisas que eram puro desenvolvimento lógico (um poema não é um teorema) tudo isso eu deito abaixo, até ficar o essencial, isto é, o poema. Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação.

Como vês, para isso é preciso uma luta constante. A minha está durando a vida inteira. O desfecho é sempre incerto. Sinto-me capaz de fazer um poema tão bom ou tão ruinzinho como aos 17 anos. Há na Bíblia uma passagem que não sei que sentido lhe darão os teólogos; é quando Jacob entra em luta com um anjo e lhe diz: “Eu não te largarei até que me abençoes”. Pois bem, haverá coisa melhor para indicar a luta do poeta com o poema? Não me perguntes, porém, a técnica dessa luta sagrada ou sacrílega. Cada poeta tem de descobrir, lutando, os seus próprios recursos. Só te digo que deves desconfiar dos truques da moda, que, quando muito, podem enganar o público e trazer-te uma efêmera popularidade.

Em todo caso, bem sabes que existe a métrica. Eu tive a vantagem de nascer numa época em que só se podia poetar dentro dos moldes clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente desnecessária. Mas, da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico.

Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos (ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal: não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo com os detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas linhas.

Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família.

Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado?

          De Caderno H (1973)




RESPOSTA

Meu caro Liberato,

Em resposta à sua carta e aos poemas que me enviou, agradeço antes de tudo a sua confissão de ser meu freguês de caderno. Diz-me você que se sente muito a gosto em poetar de mão livre e coração aberto, tanto mais que a poesia, muito antes da época em que o meu jovem chegou a este mundo, "já estava liberta de peias absurdas, como o metro, a rima, etc." Por isso mesmo é que resolvi chamá-lo de Liberato nesta resposta, embora o seu nome seja muito outro. Mas não é bem assim, Liberato...

O modernismo, ou melhor, o verso-librismo libertou o verso, é verdade, mas não libertou o poeta.

Havia, antes, uma arte poética cujos rudimentos estavam ao alcance de todos e que, se não ensinava a fazer um poema perfeito, ao menos permitia fazê-lo sem imperfeições.

Agora, qualquer poema é uma aventura, boa ou má. O poema livre, como o seu nome o diz, não é obrigado a ter versos de medida clássica, muito embora os possa ter, visto que um bom verso clássico é tão natural ou expressivo como outro qualquer.

Mas, se as linhas do poema que você estiver fazendo "livremente" não se complementarem, se o todo não apresentar uma misteriosa unidade, o poema se desagrega. Tudo tem de estar interdependente, como num sistema planetário. O poema livre é um jogo de equilíbrio, prestes a desabar ao mínimo descuido do construtor.

Quanto à armação de um poema em versos regulares, é coisa tão segura como empilhar paralelepípedos.

Também os parnasianos precisavam saber equilibrar-se, é claro, mas trabalhavam com rede de segurança...

Desconfio que você acaba de sofrer uma decepção a meu respeito, pois não lhe apresento nenhuma regra, nem sequer um truque... Não há. Ou, por outra, há. Mas isso depende do livre esforço de cada um. O verdadeiro criador é como esses presidiários que forjam, por si mesmos, as próprias armas...

Vejo, também, que só tenho raciocinado por imagens — coisa suspeita a um espírito lógico, mas acaso não estou falando com um poeta?

Em todo caso, meu caro Liberato, você estava candidamente enganado em julgar aí consigo que não se precisa suar para fazer um poema livre: precisa-se suar muito mais, por experiência o digo.

E...

          De Caderno H (1973)




TRECHO DE CARTA


Não, Josino, a rima não é um recurso ultrapassado, mas um recurso adquirido e conservado. Por que o poeta não haverá de usar esse mágico anzol de imagens? Diante das suas incriminações, Josino, desconfio muito que você já utilizou a rima várias vezes... Mas em vez de pescar uma bela sereiazinha, pescou um sapato afogado, ou o próprio... Tente outras vezes, sim?

          De Da Preguiça como Método de Trabalho (1987)




OS OLÍMPICOS

Escusado dizer a um bom poeta que os seus versos não prestam: ele não acredita. Em compensação, se disseres a mesma coisa a um mau poeta, ele também não acredita.

          De A vaca e o hipogrifo (1977)




O APANHADOR DE POEMAS

Um poema sempre me pareceu algo assim como um pássaro engaiolado... E que, para apanhá-lo vivo, era preciso um cuidado infinito. Um poema não se pega a tiro. Nem a laço. Nem a grito. Não, o grito é o que mais o espanta. Um poema, é preciso esperá-lo com paciência e silenciosamente como um gato. É preciso que lhe armemos ciladas: com rimas, que são o seu alpiste; há poemas que só se deixam apanhar com isto. Outros que só ficam presos atrás das catorze grades de um soneto. É preciso esperá-lo com assonâncias e aliterações, para que ele cante. É preciso recebê-lo com ritmo, para que ele comece a dançar. E há os poemas livres, imprevisíveis, esses é preciso inventar, na hora, armadilhas imprevistas.

          De Da Preguiça como Método de Trabalho (1987)


NOTAS DE UM LEITOR

Cuidado! Não confundir o mistério poético com uma linguagem em código: a polícia pode desconfiar.

          De Da Preguiça como Método de Trabalho (1987)

 

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Outras Palavras

Carlos Machado, 2013

•  Outras Palavras
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* Cyro dos Anjos
  in O Amanuense Belmiro (1936)