Número 20

Segunda-feira, 21 de outubro de 2002 

"O futuro pertence a Deus, que não sabe onde o escondeu." (C.D.A.)

  O medo

Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002


 

No bojo das discussões em torno das atuais eleições presidenciais, a atriz Regina Duarte trouxe à tona o tema do medo. Ela diz que tem medo de uma eventual vitória nas urnas do candidato Luís Inácio Lula da Silva.

Esse tema traz à memória os poemas de Drummond a propósito do medo. Dois deles se destacam: "Congresso Internacional do Medo", em Sentimento do Mundo (1940), e "O Medo", em A Rosa do Povo (1945). Ambos foram escritos em momento de conflito e de opressão
a Segunda Guerra Mundial e, no Brasil, a ditadura do Estado Novo.

A diferença da abordagem de Drummond em relação à de Regina Duarte é que ele vê o medo como uma imposição dos opressores. E vê, também, que, ao contrário do medo, o que interessa aos oprimidos, e às pessoas de boa vontade em geral, é a esperança. É o movimento de ir "para a frente, recuando de olhos acesos".

Transcrevo ao lado o poema "O Medo", de Drummond, e abaixo sua caracterização histórica, escrita por Marina Camargo Costa e Iná Camargo Costa. Não conheço as autoras. Recebi seu texto de terceiros. Como pedem divulgação, sinto-me autorizado a reproduzi-lo. Aí vai:

                        . . .

"NOS ANOS EM QUE a luta contra o Estado Novo começou a sair da clandestinidade, jornais como O Estado de S. Paulo abriram suas páginas aos jovens que participavam
corajosamente dessa luta. Assim, em 1943, uma série de intervenções desses bravos militantes foi publicada naquele jornal e mais tarde no volume Plataforma da Nova Geração (1945).

Como não podia deixar de ser, Antonio Candido deu a sua preciosa contribuição ao empreendimento e em seu texto, disponível no volume Textos de Intervenção organizado por Vinícius Dantas, desenvolveu dois temas que interessam agora.

O primeiro diz respeito aos poemas de combate de Carlos Drummond de Andrade, hoje reunidos nos volumes Sentimento do Mundo e A Rosa do Povo; o segundo diz respeito ao papel torpe da Reação intelectual e artística, que naquela altura procurava disseminar O MEDO por toda a parte.

A conclusão do texto de Antonio Candido é extremamente lúcida (como sempre):

Porque há para nós um problema sério, tão sério que nos leva às vezes a procurar meio afoitamente uma 'solução'; a buscar uma regra de conduta, custe o que custar. Este problema é o do medo. Do medo que nos toma a todos de estarmos sendo inferiores à nossa tarefa; ou de não conseguirmos fazer algo definitivamente útil para o nosso tempo (...)  Eu não posso bem dizer que tenha [um critério para afastar o medo], mas confesso que esse combate a todas as formas de Reação, que eu apenas sugeri, nos ajudaria muito a ficar livres dele.

A resposta de Carlos Drummond de Andrade veio no poema 'O Medo'."

Marina Camargo Costa e
Iná Camargo Costa
 

                        A Antonio Candido

        "Porque há para todos nós um problema sério...
         Este problema é o do medo."
                   (Antonio Candido, Plataforma de Uma Geração

 

Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
As existências são poucas:
Carteiro, ditador, soldado.
Nosso destino, incompleto.

E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.

Somos apenas uns homens
e a natureza traiu-nos.
Há as árvores, as fábricas,
Doenças galopantes, fomes.

Refugiamo-nos no amor,
este célebre sentimento,
e o amor faltou: chovia,
ventava, fazia frio em São Paulo.

Fazia frio em São Paulo...
Nevava.
O medo, com sua capa,
nos dissimula e nos berça.

Fiquei com medo de ti,
meu companheiro moreno,
De nós, de vós: e de tudo.
Estou com medo da honra.

Assim nos criam burgueses,
Nosso caminho: traçado.
Por que morrer em conjunto?
E se todos nós vivêssemos?

Vem, harmonia do medo,
vem, ó terror das estradas,
susto na noite, receio
de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,
lentos poderes do láudano.
Até a canção medrosa
se parte, se transe e cala-se.

Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.

E com asas de prudência,
com resplendores covardes,
atingiremos o cimo
de nossa cauta subida.

O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.

Tenhamos o maior pavor,
Os mais velhos compreendem.
O medo cristalizou-os.
Estátuas sábias, adeus.

Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes...
Fiéis herdeiros do medo,

eles povoam a cidade.
Depois da cidade, o mundo.
Depois do mundo, as estrelas,
dançando o baile do medo.


Drummond: 100 anos
Carlos Machado, 2002

Carlos Drummond de Andrade
In A Rosa do Povo
José Olympio, 1945
© Graña Drummond