Número 21

Quarta-feira, 23 de outubro de 2002 

"Teus ombros suportam o mundo/ e ele não pesa mais que a mão de uma criança." (C.D.A.)

  Drummond em italiano

Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002

 

Caríssimos, esta é mais uma edição especial. O que vocês vão ler ao lado não está em livrarias brasileiras. Vera Lúcia de Oliveira, uma amiga paulista que vive na Itália, enviou-me um punhado de traduções publicadas na língua de Dante para algumas jóias da poesia de Drummond.

Professora de
literatura e também poeta com vários livros premiados, em português e em italiano, Vera juntou algumas traduções de sua própria lavra e outras do italiano Antonio Tabucchi, que já verteu para seu idioma muitos dos poemas de Fernando PessoaPoeta e romancista, considerado um dos mais importantes escritores contemporâneos da Itália, Tabucchi publicou uma antologia chamada Sentimento del Mondo com textos traduzidos do poeta de Itabira.

Vera, leitora deste correio poético, também nos chama a atenção para o fato de que a versão de Tabucchi para "No meio do caminho" é superior àquela que incluí aqui na edição n. 4, assinada por Ruggero Jacobbi.

Feitas as apresentações, passemos à poesia. Dos textos enviados por Vera, escolhi quatro: duas traduções dela e duas de Tabucchi. As primeiras são "Mani Allacciate"  ("Mãos Dadas") e "Confessione"  ("Confissão"); e as outras, "Liquidazione"("Liquidação") e "I Morti" ("Os Mortos"), dois poemetos de fina sensibilidade do mestre Drummond.

Obrigado
à Vera Lúcia de Oliveira por essa oportunidade de ler nosso poeta em sonoridade italiana. Se quiserem ver mais amostras do trabalho da Vera Lúcia, dêem uma passada no site dela: http://www.veraluciadeoliveira.it/



 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

MÃOS DADAS

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da
                                                                     [ janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os
                                                     [ homens presentes,
a vida presente.

In Sentimento do Mundo
José Olympio, 19
40
© Graña Drummond


Mani allacciate
            Tradução: Vera Lúcia de Oliveira

Non sarò il poeta di un mondo caduco.
Non canterò neppure il mondo futuro.
Sono legato alla vita e guardo i miei compagni.
Sono taciturni ma nutrono grandi speranze.
In mezzo a loro, scruto l'enorme realtà.
Il presente è immenso, non allontaniamoci.
Non allontaniamoci troppo, teniamoci per mano.

Non sarò il cantore di una donna, di una storia,
non dirò i sospiri all'imbrunire, il paesaggio visto dalla
                                                                [ finestra,
non distribuirò narcotici o lettere di suicida,
non fuggirò alle isole né sarò rapito dai serafini.
Il tempo è la mia materia, il tempo presente, gli uomini
                                                               [ presenti,
la vita presente.



                             •••o•••

CONFISSÃO  

Não amei bastante meu semelhante,
não catei o verme nem curei a sarna.
Só proferi algumas palavras,
melodiosas, tarde, ao voltar da festa.

Dei sem dar e beijei sem beijo.
(Cego é talvez quem esconde os olhos
embaixo do catre.) E na meia-luz
tesouros fanam-se, os mais excelentes.

Do que restou, como compor um homem
e tudo que ele implica de suave,
de concordâncias vegetais, murmúrios
de riso, entrega, amor e piedade?

Não amei bastante sequer a mim mesmo,
contudo próximo. Não amei ninguém.
Salvo aquele pássaro
vinha azul e doido
que se esfacelou na asas do avião.

In Claro Enigma
José Olympio, 1951
© Graña Drummond
 

CONFESSIONE
            Tradução: Vera Lúcia de Oliveira

Non ho amato abbastanza il mio simile,
non ho cercato il verme né curato la rogna.
Ho solo proferito qualche parola,
melodiosa, tardi, al ritorno della festa.

Ho dato senza dare e baciato senza baci.
(Cieco è forse chi nasconde gli occhi
sotto la branda). E nella mezza-luce
tesori si mutilano, i più eccellenti.

Di quel che è rimasto, come comporre un uomo
e tutto ciò che egli implica di soave,
di concordanze vegetali, sussurri
di riso, dono, amore e pietà?

Non ho amato abbastanza nemmeno me stesso,
seppure prossimo. Non ho amato nessuno.
Salvo quell'uccello - veniva azzurro e folle -
che si è sfracellato sull'ala dell'aereo.

 

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LIQUIDAÇÃO

A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em via de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista do mundo
seus imponderáveis
por vinte, vinte contos.

In Boitempo
José Olympio, 1968
© Graña Drummond


LIQUIDAZIONE
            Tradução: Antonio Tabucchi

La casa è stata venduta con tutti i ricordi
tutti i mobili tutti gli incubi
tutti i peccati commessi o in procinto di essere
                                                     [ commessi
la casa è stata venduta col suo sbattere di porte
col suo vento incanalato la sua vista sul mondo
i suoi imponderabili
per venti, venti soldi.




                             •••o•••

OS MORTOS

Na ambígua intimidade
que nos concedem
podemos andar nus
diante de seus retratos.
Não reprovam nem sorriem
como se neles a nudez fosse maior.

In Lição de Coisas
José Olympio, 1962
© Graña Drummond


I MORTI
            Tradução: Antonio Tabucchi

Nell'ambigua intimità
che ci concedono
possiamo camminare nudi
davanti ai loro ritratti.
Non hanno riprovazione né sorriso
come se in essi la nudità fosse maggiore.


 


Centenário do poeta:
31 de outubro de 2002

Drummond: 100 anos
Carlos Machado, 2002

Traduções:

Vera Lúcia de Oliveira ("Mani Allacciate" e "Confessione")

Antonio Tabucchi ("Liquidazione" e "I Morti")
In Sentimento del Mondo
Torino, Einaudi, 1987