Número 25

Quinta-feira, 31 de outubro de 2002        

"Tudo é possível, só eu impossível." (C.D.A.)

 

  Nosso tempo

                        (trecho)

Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002


100 ANOS HOJE

Hoje, 31 de outubro, é o aniversário do poeta. Um século. Com a mais limpa alegria, vemos que ele está presente em toda parte. O artista que soube traduzir em seu canto as dores e angústias do cidadão comum tem a sua voz reconhecida e amplificada. Mas não vamos aqui fazer discursos nem inaugurar estátuas. Nada mais anti-Drummond.

A melhor forma de homenagear o poeta, creio, é tentar ler com profundidade a sua poesia. Ao lado uma sugestão de leitura.

"Nosso Tempo" é considerado por muitos o melhor poema do Drummond. Escrito num momento histórico especialmente difícil (a Segunda Guerra Mundial e, no Brasil, a ditadura do Estado Novo), o texto conserva incrível atualidade. E isso é verdade, mesmo que você conteste: "Mas não temos agora um conflito mundial nem estamos sob uma ditadura!"

O poema se mantém vivo porque toca na essência, naquilo que sempre está por trás das guerras e tiranias
  "o espl
êndido negócio", "sem cor e sem cheiro", que "toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem."

Devido à longa extensão de "Nosso Tempo", transcrevo ao lado apenas a parte V do poema, que acredito comprova sua pungente atualidade.

 


Selo postal, lançado hoje
em homenagem a Drummond:
no texto, o "anjo torto"
 

V

Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas 
                                                           [ vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é
                                                     [ tempo de comida,
mais tarde será o de amor.

Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios,
                                           [ forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.

Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
Imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade,
                                                                 [ imaginam.

Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras,
                                [ apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrado sem dor,
confiar-se ao que-bem-me-importa
do sono.

Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo
                                                                   [ com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.
 

Drummond: 100 anos
Carlos Machado, 2002

Carlos Drummond de Andrade
In A Rosa do Povo
José Olympio, 1945
© Graña Drummond