Número 35

Sexta-feira, 22 de novembro de 2002 

"O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera." (C.D.A.)

  Os filhos do anjo torto

Carlos Drummond de Andrade
100 anos: 1902-2002


Drummond: passeio em Copacabana

 

Drummond semeou influências por toda parte. Um exemplo disso é mostrado pelo antológico "Poema de Sete Faces", que é o primeiro texto do primeiro livro do poeta, de 1930 (saiu, aqui, no boletim n. 1):

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser
gauche na vida.

O poema tem gerado filhos e netos de Drummond em diferentes gerações, na poesia e na música popular.

O anjo torto é uma idéia-força. E faz germinar coisas geniais. Não dá para resistir, por exemplo, ao "mandamento" do anjo hippie do tropicalista Torquato Neto (1944-1972):

vai bicho desafinar
o coro dos contentes


É o mesmo mandamento do anjo de Carlos, mas com um sabor mais ácido.

Na visão de Chico Buarque, o anjo virou um querubim chato e safado. Para a mineira Adélia Prado, ele é esbelto e toca trombeta.

Bem ao gosto dela, que navega
mas de forma bem gauche na cultura da Igreja Católica.

Com uma genial visão feminina, Adélia contesta escancaradamente o mandamento do anjo ("Vai carregar bandeira"):

Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.


Conclusão: Deus pode ser brasileiro, mas o anjo da guarda da gente é torto, safado, chato e toca trombeta. E mais: autoritário, ele decreta.

                          

O anjo torto de Drummond também faz aparições explícitas em várias outras obras, como as músicas "Quarto de Hotel", de Caetano Veloso (CD Caetano, Polygram, 1987) e "Sonho Real" (LP de Lô Borges, Sonho Real, 1984), de Lô Borges e Ronaldo Bastos.

                          

Numa entrevista concedida ao iG Cultura, David Arrigucci Jr., professor aposentado de Teoria e Comunicação Literária da USP, discorre sobre a obra de Carlos Drummond de Andrade. O eixo da entrevista é o livro Coração Partido (Cosac & Naify), recém-lançado por Arrigucci, no qual ele faz "uma análise da poesia reflexiva de Drummond".

 

 




Jards Macalé e Blé Quinho, Let's Play That: para "desafinar o coro dos contentes".

 

LET'S PLAY THAT

                    Torquato Neto (musicado por Jards Macalé)
 
Quando eu nasci
um anjo louco muito louco
veio ler a minha mão
não era um anjo barroco
era um anjo muito louco, torto
com asas de avião
 
eis que esse anjo me disse
apertando minha mão
com um sorriso entre dentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes
vai bicho desafinar
o coro dos contentes

Let's play that

Do CD Torquato Neto - Todo Dia É Dia D
Vários Artistas, Dubas Música, 2002



Chico Buarque e Ney Matogrosso: Até o Fim, contra o decreto do "anjo safado"
 

 

ATÉ O FIM
                    Chico Buarque de Hollanda

 
Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
 
Inda garoto deixei de ir à escola
Cassaram meu boletim
Não sou ladrão, eu não sou bom de bola
Nem posso ouvir clarim
Um bom futuro é o que jamais me esperou
Mas vou até o fim
 
Eu bem que tenho ensaiado um progresso
Virei cantor de festim
Mamãe contou que eu faço um bruto sucesso
Em Quixeramobim
Não sei como o maracatu começou
Mas vou até o fim
 
Por conta de umas questões paralelas
Quebraram meu bandolim
Não querem mais ouvir as minhas mazelas
E a minha voz chinfrim
Criei barriga, minha mula empacou
Mas vou até o fim
 
Não tem cigarro, acabou minha renda
Deu praga no meu capim
Minha mulher fugiu com o dono da venda
O que será de mim?
Eu já nem lembro pr'onde mesmo que vou
Mas vou até o fim
 
Como já disse, era um anjo safado
O chato dum querubim
Que decretou que eu tava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim

Do LP Chico Buarque - Polygram, 1978

 




Adélia Prado: anjo esbelto que toca trombeta




COM LICENÇA POÉTICA
                     Adélia Prado
 
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.

In Adélia Prado, Poesia Reunida
Siciliano, São Paulo, 1991

 

Drummond: 100 anos
Carlos Machado, 2002

Centenário do poeta:
31 de outubro de 2002