Carlos Pena Filho
Caros,
"Escrevo esse nome, e estou certo de que o inscrevo na
eternidade. Pois me parece impossível que as presentes e as futuras gerações
esqueçam o poeta encantador, tão cedo e tão tragicamente desaparecido".
Estas palavras foram escritas por
Manuel Bandeira. O poeta que ele inscreve na eternidade com tamanha certeza
é o recifense Carlos Pena Filho (1929-1960). Morto num acidente de automóvel aos
30 anos, Pena Filho é muito menos conhecido do que deveria, dada a alta
qualidade de sua criação poética.
Dono de um lirismo envolvente, é um poeta de imagens plásticas nas quais
se destaca um intenso gosto pela cor — notadamente o
verde e o azul —, a luz e o movimento. Num poema em
homenagem a Pena Filho, João Cabral de Melo Neto,
seu conterrâneo, diz que ele sabia "todos os verdes que há no verde".
Exemplos desse lirismo do poeta são mostrados nos textos ao lado.
Pena Filho conquistou a magia de um verso claro e cantante, cheio de música e
ritmo. É realmente desconcertante saber que um gênio desses não passou dos 30
anos. Seus poemas estão reunidos num volume chamado Livro Geral, título
que ele publicou em 1959 e que foi relançado e ampliado em 1999. Infelizmente, a
obra não está mais disponível.
Há, no entanto, uma boa antologia, Os Melhores Poemas de Carlos Pena Filho
(Global, 4a. ed., 2000), organizada por Edilberto Coutinho. Esse mesmo autor,
que conviveu com o poeta, publicou também O Livro de Carlos (José
Olympio, 1983, esgotado), uma combinação de biografia, antologia e crítica da
obra do poeta das cores. Essencialmente, os poemas e informações deste
boletim foram retirados desses dois livros.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Poesia vestida de azul
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Carlos Pena Filho |
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Picasso, O Velho Guitarrista (1903)
SONETO DO DESMANTELO AZUL
Então, pintei de azul os meus
sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas,
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
Picasso, Retrato de Jaime Sebartés (1901-02)
POEMA
Senhora de muito espanto,
vestindo coisas longínquas
e alguns farrapos de sono,
eu vim para te dizer
que inutilmente contemplo
na planície de teus olhos
o incêndio do meu orgulho.
Senhora de muito espanto,
sentada além do crepúsculo
e perfeitamente alheia
a realejos e manhãs.
Eu vim para te mostrar
que se inaugurou um abismo
vertical e indefinido
que vai do meu lábio arguto
ao chumbo do teu vestido.
Senhora de muito espanto
e alguns farrapos de sono,
onde o céu é coisa gasta
que ao meu gesto se confunde.
Um dia perdi teu corpo
nas cores do mapa-múndi.
Picasso, A Vida (1903)
TESTAMENTO DO HOMEM SENSATO
Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: “Ele era assim...”
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.
Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.
Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em vôo se arremeda,
deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.
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