Número 5

São Paulo, quarta-feira, 5 de fevereiro de 2003 

"Nenhuma presença é mais real que a falta." (Myriam Fraga)
 


Cecília, por Arpad Szenes


Caros,

A Cecília Meireles mais citada e conhecida é aquela das belas canções suaves e evanescentes, profundamente musicais. Esse lado da poeta é tão forte que quase faz esquecer um outro, igualmente expressivo. Trata-se da Cecília que transfigura em poesia situações mais concretas da vida.

E essa Cecília existe. Esplendorosamente. Veja-se o estupendo trabalho que é O Romanceiro da Inconfidência (1953). Não é tarefa simples colocar em versos e que versos! toda a trama histórica dos inconfidentes mineiros. Essa mesma Cecília é a autora do poema ao lado, "Lamento do Oficial por seu Cavalo Morto".

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Nestes versos de Cecília subjaz uma decidida condenação à guerra e ao uso da ciência e da tecnologia como armas de dominação e destruição. Uma nota lírica e humana perfeitamente válida nos dias atuais, quando o governo americano ensaia mais uma aventura imperial e belicista, de imprevisíveis conseqüências.

Ah, "nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra"...


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado


 

Veja outros poemas de Cecília Meireles nos boletins:
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- poesia.net n. 261
- poesia.net n. 267
- poesia.net n. 278

 

Em séculos de sombra

Cecília Meireles

 





LAMENTO DO OFICIAL POR SEU CAVALO MORTO


Nós merecemos a morte,
porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pela nossa cabeça embrulhada em séculos de
                                                [ sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas
                                                [ ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem
                                          [ explicação.

Criamos o fogo, a velocidade, a nova
                                          [ alquimia,
os cálculos do gesto,
embora sabendo que somos irmãos.
Temos até os átomos por cúmplices, e que
                                          [ pecados
de ciência, pelo mar, pelas nuvens,
                                          [ nos astros!
Que delírio sem Deus, nossa imaginação!

E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha
                                  [ que, enganada,
recebes. Não te queixas. Não pensas. Não
                               [ sabes. Indigno,
ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.

Animal encantado — melhor que nós todos! —
                              [ que tinhas tu com este
                              [ mundo dos homens?
Aprendias a vida, plácida e pura, e
                                      [ entrelaçada
em carne e sonho, que os teus olhos
                                      [ decifravam...
Rei das planícies verdes, com rios trêmulos
                                      [ de relinchos...
Como vieste a morrer por um que mata seus
                                      [ irmãos?


 

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Carlos Machado, 2003

•  Cecília Meireles
    In Mar Absoluto/Retrato Natural
   
Nova Fronteira, 1983