Número 3

São Paulo, quinta-feira, 26 de dezembro de 2002 

"Às cinco da manhã, a angústia se veste de branco." (Vinicius de Moraes)
 


Charles Baudelaire




Amigo, amiga,

Você abre um livro de poesia e, logo no início, num poema chamado "Ao Leitor", o autor avisa: "Na almofada do mal é Satã Trismegisto/ Quem docemente nosso espírito consola". Para não deixar dúvida, mais adiante ele reafirma: "É o Diabo que nos move e até nos manuseia!"

Não, não adianta fingir que não é com você. O poeta assegura que você sabe do que ele está falando, e termina mandando mordazes e cordiais saudações: "Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!"

Claro, você já adivinhou: o livro é Les Fleurs du Mal (As Flores do Mal) e o poeta, o francês Charles Baudelaire. Continue a folhear. O tom é sombrio. São textos cheios de tédio, morte, sepultura, melancolia, volúpia, luxúria, demônios, vermes, serpentes, maldições e até uma ladainha invocando o Demônio: "Tem piedade, ó Satã, desta longa miséria".

Não se assuste. Religioso a seu modo, pagão e satanista, Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867) é considerado o pai do simbolismo francês, movimento cuja origem os críticos localizam exatamente no livro As Flores do Mal, de 1857. Na França, a obra de Baudelaire reverbera na poesia de outros poetas "malditos", como Arthur Rimbaud, Paul Verlaine e Stéphane Mallarmé.

Celebrado como o primeiro poeta moderno e um dos escritores de mais forte influência nas gerações posteriores mundo afora, Baudelaire contrabandeou para a poesia de sua época, marcada pelo idealismo romântico, o mal-estar das cidades e o choque do feio, dos temas sujos e doentios.

Ao publicar As Flores do Mal, ele foi condenado por ofensa à moral pública. Além de pagar uma multa em dinheiro, a justiça obrigou-o a retirar seis poemas do volume. Os seis voltaram a integrar a obra onze anos depois, na primeira edição póstuma do livro, em 1868.

O primeiro texto ao lado é um desses poemas condenados, "À celle qui est trop gaie" ("A que está sempre alegre"). Ao comentar especificamente a censura a esse poema, Baudelaire diz: "Os juízes julgaram descobrir um sentido a um tempo sanguinário e obsceno nas duas últimas estrofes. A gravidade da coletânea excluía semelhantes gracejos. Mas veneno equivalendo a spleen ou a melancolia era uma idéia muito simples para criminalistas. Que sua interpretação sifilítica lhes fique na consciência!"

Segundo nota do editor francês, "a que está sempre alegre" é Apollonia Sabatier, animadora cultural pariense, cuja casa era freqüentada por figuras como Gustave Flaubert, Théophile Gautier e o próprio Baudelaire. A sorridente Madame Sabatier também teve um caso com o poeta.

Outra pequena amostra de Baudelaire vem de seu livro "Petites Poèmes en Prose", de 1862. Trata-se do conhecido poema "Enivrez-vous" ("Embriaguem-se"). Uma curiosidade: esse texto é citado no "Poema da Necessidade", de Carlos Drummond de Andrade:
"É preciso estudar volapuque/ é preciso estar sempre bêbedo,/ é preciso ler Baudelaire/ é preciso colher as flores/ de que falam velhos autores." (In Sentimento do Mundo, 1940)

Por fim, "O Convite à Viagem", uma simpática florzinha do mal que propõe uma fuga para um lugar onde "tudo é paz e rigor/ luxo, beleza e langor". Enfim, uma proposta de sonho e fuga que hoje não tem nada de maldito. Até lembra o clima da canção de Gilberto Gil: "Vamos fugir/ Pr'outro lugar, baby/ (...) outro lugar ao sol/ Outro lugar ao sul/ Céu azul, céu azul/ Onde haja só meu corpo nu/ Junto ao seu corpo nu".

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No Brasil, destacam-se dois tradutores d'As Flores do Mal. Um é o paulista Guilherme de Almeida (1890-1969), que verteu 21 dos poemas, reunidos no livro Flores das "Flores do Mal" de Baudelaire (Edições de Ouro). O outro é o carioca Ivan Junqueira (1934-), que cometeu a monumental proeza de passar ao português todos os 167 poemas do volume. Eles estão em: Charles Baudelaire, As Flores do Mal, edição bilíngüe, tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira (Nova Fronteira, 1985). Há ainda a tradução, igualmente completa, de Jamil Almansur Haddad. Eu a tenho numa edição do extinto Círculo do Livro, sem data.
 

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Para ler online todos os poemas de As Flores do Mal no original, vá ao site Poésie Française, que também tem antologias de vários outros poetas.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



ATENÇÃO: poesia.net sai temporariamente de circulação em janeiro. Férias.

Feliz 2003 para todos.


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Veja outros poemas de Charles Baudelaire no boletim:
- poesia.net n. 288.

 

 

As flores do mal

Charles Baudelaire

 




A QUE ESTÁ SEMPRE ALEGRE

Teu ar, teu gesto, tua fronte
São belos qual bela paisagem;
O riso brinca em tua imagem
Qual vento fresco no horizonte.

A mágoa que te roça os passos
Sucumbe à tua mocidade,
À tua flama, à claridade
Dos teus ombros e dos teus braços.

As fulgurantes, vivas cores
De tuas vestes indiscretas
Lançam no espírito dos poetas
A imagem de um balé de flores.

Tais vestes loucas são o emblema
De teu espírito travesso;
Ó louca por quem enlouqueço,
Te odeio e te amo, eis meu dilema!

Certa vez, num belo jardim,
Ao arrastar minha atonia,
Senti, como cruel ironia,
O sol erguer-se contra mim;

E humilhado pela beleza
Da primavera ébria de cor,
Ali castiguei numa flor
A insolência da Natureza.

Assim eu quisera uma noite,
Quando a hora da volúpia soa,
Às frondes de tua pessoa
Subir, tendo à mão um açoite,

Punir-te a carne embevecida,
Magoar o teu peito perdoado
E abrir em teu flanco assustado
Uma larga e funda ferida,

E, como êxtase supremo,
Por entre esses lábios frementes,
Mais deslumbrantes, mais ridentes,
Infundir-te, irmã, meu veneno!




À CELLE QUI EST TROP GAIE

Ta tête, ton geste, ton air
Sont beaux comme un beau paysage;
Le rire joue en ton visage
Comme un vent frais dans un ciel clair.

Le passant chagrin que tu frôles
Est ébloui par la santé
Qui jaillit comme une clarté
De tes bras et de tes épaules.

Les retentissantes couleurs
Dont tu parsèmes tes toilettes
Jettent dans l'esprit des poètes
L'image d'un ballet de fleurs.

Ces robes folles sont l'emblème
De ton esprit bariolé;
Folle dont je suis affolé,
Je te hais autant que je t'aime!

Quelquefois dans un beau jardin
Où je traînais mon atonie,
J'ai senti, comme une ironie,
Le soleil déchirer mon sein,

Et le printemps et la verdure
Ont tant humilié mon coeur,
Que j'ai puni sur une fleur
L'insolence de la Nature.

Ainsi je voudrais, une nuit,
Quand l'heure des voluptés sonne,
Vers les trésors de ta personne,
Comme un lâche, ramper sans bruit,

Pour châtier ta chair joyeuse,
Pour meurtrir ton sein pardonné,
Et faire à ton flanc étonné
Une blessure large et creuse,

Et, vertigineuse douceur!
À travers ces lèvres nouvelles,
Plus éclatantes et plus belles,
T'infuser mon venin, ma soeur!





EMBRIAGUEM-SE

É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: "É hora de embriagar-se!

Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.



ENIVREZ-VOUS

Il faut être toujours ivre. Tout est là: c’est l’unique question. Pour ne pas sentir l’horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.

Mais de quoi? De vin, de poésie, ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.

Et si quelquefois, sur les marches d’un palais, sur l’herbe verte d’un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l’ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l’étoile, à l’oiseau, à l’horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est; et le vent, la vague, l’étoile, l’oiseau, l’horloge, vous répondront: “Il est l’heure de s’enivrer!

Pour n’être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise.



 

O CONVITE À VIAGEM

     Minha doce irmã,
     Pensa na manhã
Em que iremos, numa viagem,
     Amar a valer,
     Amar e morrer
No país que é a tua imagem!
     Os sóis orvalhados
     Desses céus nublados
Para mim guardam o encanto
     Misterioso e cruel
     Desse olhar infiel
Brilhando através do pranto.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

     Os móveis polidos,
     Pelos tempos idos,
Decorariam o ambiente;
     As mais raras flores
     Misturando odores
A um âmbar fluido e envolvente,
     Tetos inauditos,
     Cristais infinitos,
Toda uma pompa oriental,
     Tudo aí à alma
     Falaria em calma
Seu doce idioma natal.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

     Vê sobre os canais
     Dormir junto aos cais
Barcos de humor vagabundo;
     É para atender
     Teu menor prazer
Que eles vêm do fim do mundo.
     — Os sangüíneos poentes
     Banham as vertentes,
Os canis, toda a cidade,
     E em seu ouro os tece;
     O mundo adormece
Na tépida luz que o invade.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.




L'INVITATION AU VOYAGE

     Mon enfant, ma soeur,
     Songe à la douceur
D'aller là-bas vivre ensemble!
     Aimer à loisir,
     Aimer et mourir
Au pays qui te ressemble!
     Les soleils mouillés
     De ces ciels brouillés
Pour mon esprit ont les charmes
     Si mystérieux
     De tes traîtres yeux,
Brillant à travers leurs larmes.

Là, tout n'est qu'ordre et beauté,
Luxe, calme et volupté.

     Des meubles luisants,
     Polis par les ans,
Décoreraient notre chambre;
     Les plus rares fleurs
     Mêlant leurs odeurs
Aux vagues senteurs de l'ambre,
     Les riches plafonds,
     Les miroirs profonds,
La splendeur orientale,
     Tout y parlerait
     À l'âme en secret
Sa douce langue natale.

Là, tout n'est qu'ordre et beauté,
Luxe, calme et volupté.

     Vois sur ces canaux
     Dormir ces vaisseaux
Dont l'humeur est vagabonde;
     C'est pour assouvir
     Ton moindre désir
Qu'ils viennent du bout du monde.
     — Les soleils couchants
     Revêtent les champs,
Les canaux, la ville entière,
     D'hyacinthe et d'or;
     Le monde s'endort
Dans une chaude lumière.

Là, tout n'est qu'ordre et beauté,
Luxe, calme et volupté.



 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2002

Charles Baudelaire
  "A Que Está Sempre Alegre" e "O Convite à 
        Viagem"
   In As Flores do Mal
   Nova Fronteira, 1985, 2a. ed.
   Trad., introd. e notas: Ivan Junqueira
•  "Embriaguem-se"
   In Pequenos Poemas em Prosa
   Tradutor não identificado