Número 29

São Paulo, quarta-feira, 23 de julho de 2003 

«Sou náufrago de mim/ E invento minhas ilhas.» (Myriam Fraga)
 


Iacyr Anderson Freitas


Caros amigos,

O poeta e ensaísta mineiro Iacyr Anderson Freitas é um nome de peso na poesia que se faz atualmente no Brasil. E esta não é apenas uma frase protocolar: com estréia em 1982, o autor já coleciona um acervo de 15 livros publicados, somente de poesia. Prolífico, seu mais recente trabalho, A Soleira e o Século, surgido no final de 2002, é na verdade a reunião de seis livros de poesia, escritos durante cerca de dez anos.

Detentor de prêmios literários aqui e no exterior, Iacyr Anderson Freitas tem textos traduzidos e publicados em vários idiomas. Nascido em 1963,  o poeta representa um caso raro de jovem que se movimenta com desenvoltura tanto em poemas com feição moderna como em formas tradicionais. Exemplos dessas últimas são os sonetos que ele apresenta em "Mirante", um dos seis livros contidos em A Soleira e o Século.


Um aspecto que ressalta no trabalho do poeta é sua exuberante criatividade com as metáforas. Isso pode ser visto no poema ao lado, "Pequeno Diário da Palavra", extraído de A Soleira e o Século. Para ele, as palavras têm claridade, têm sexo e até carecem de pátria.

Outra faceta de Iacyr Anderson aparece naquela ironia triste que combina uma pitada de mordacidade com fartas doses de melancolia. Um traço certamente herdado de mineiros mais antigos, especialmente Drummond. Essa ironia está presente no poema "Confissão", também transcrito ao lado.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado

 

Palavra carece de pátria

Iacyr Anderson Freitas

 


PEQUENO DIÁRIO DA PALAVRA


Toda palavra tem um oco
uma fenda uma avessa
claridade
de onde as formigas emigram.

Há gravetos, conchas vocabulares,
acentos à paisana, vírgulas úmidas e bivalves.

Um vento antigo
tange as crases desse poema, arrasta
os pontos de exclamação pelos cabelos.
Estende-os para secar
o sol mais triste de seu nome.

O meio-dia a esmo
bate a sua orelha na cancela.

Toda palavra tem sexo e sintaxe,
um amarelo em luta
com as folhas mortas do terreiro.

Alfabeto crivado de dízimos
onde não se pode tagarelar
sem doer um grão de arroz
por sob a língua.

Palavra carece de pátria
lugar de raiz e eleição.

Onde adensa sua espera, duas borboletas
grifam a giz a paisagem.



CONFISSÃO


Sejamos sinceros, meu bem,
dispamos o pijama
das mitologias:

a eternidade não conhece o amor.

O amor também não sabe
verdadeiramente
o que é o amor

e, no fundo, nós nunca acreditamos muito
em parto
sem dor.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2003

Iacyr Anderson Freitas
In A Soleira e o Século
Nankin/Funalfa, São Paulo/Juiz de Fora, 2002