Rainer Maria Rilke
Caros,
Há o Rilke das soberbas "Elegias de Duíno", que influenciaram meio mundo de
poetas. Ali, são longos cantos, de longos versos derramados, marcados por um tom
abertamente metafísico. Mas há
também outro Rilke, de um lirismo mais pé-no-chão. Essa é a faceta do poeta que
destacamos neste boletim.
Nascido em Praga, na Tcheco-Eslováquia, Rainer Maria Rilke (1875-1926) inclui-se entre os
mais altos nomes da poesia no século XX e certamente o mais alto em língua
alemã.
Durante largo período, a faceta metafísica da poesia de Rilke determinou uma
verdadeira cisão entre poetas. De um lado, postava-se uma enorme legião de
influenciados pelos versos rilkeanos — nomeadamente, no Brasil, os poetas da
chamada Geração de 45. De outro, os poetas de esquerda, que consideravam aquilo
uma completa alienação. Pablo Neruda, no Canto Geral (1950), inclui Rilke
entre os "falsos bruxos existenciais" e os "misterizantes".
Augusto de Campos conta que também os poetas concretos, por outras razões,
puseram Rilke na geladeira. Depois, houve uma reconciliação.
Tanto que os poemas mostrados neste boletim são todos
traduzidos por Augusto de Campos. O poeta concreto, naturalmente, prefere os
"poemas-coisa" — expressão do próprio Rilke, Dinggedichte —, versos em que
se destaca um discurso mais colado à realidade.
Aqui vão três desses poemas: "A Pantera", "Dançarina Espanhola" e "O Poeta",
todos integrantes do livro "Novos Poemas", de 1907. Nos dois primeiros, a
palavra poética de Rilke se mostra em toda a sua precisão e expressividade. No
último, "O Poeta", a mesma precisão serve a um lirismo mais confessional.
Também merecem destaque, entre as numerosas traduções de Rilke para o português,
os trabalhos de Dora Ferreira da Silva (Elegias de Duíno, Ed. Globo,
2001) e de José Paulo Paes (Poemas, Cia. das Letras, 1993).
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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A chama viva do flamenco
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Rainer Maria Rilke |
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DANÇARINA ESPANHOLA
Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.
E logo ela é só flama, inteiramente.
Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.
Então como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.
A PANTERA
(No Jardin des Plantes, Paris)
De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.
A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.
De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.
O POETA
Já te despedes de mim, Hora.
Teu golpe de asa é o meu açoite.
Só: da boca o que faço agora?
Que faço do dia, da noite?
Sem paz, sem amor, sem teto,
caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afeto
fica mais rico e me devora.
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