Número 240 - Ano 6

São Paulo, quarta-feira, 19 de dezembro de 2007 

«As palavras fazem seus ninhos / e põem seus ovos de fogo / nas feridas abertas do coração.» (Francisco Carvalho) *
 


Vinicius de Moraes


Caros,

Este é o último boletim do ano. Também em janeiro, como ocorre desde 2002, o poesia.net não circula. Inicio com esta nota burocrática porque, nos anos anteriores, coloquei um aviso (como agora) no final desta coluna. Não bastou. Muita gente me enviou e-mail estranhando a ausência do boletim. Feliz 2008 para todos.


Ainda em clima de aniversário do boletim — e para fechar o ano em alto estilo —, vamos revisitar o poeta carioca Vinicius de Moraes (1913-1980), que já foi destacado na edição n. 12, de 26/03/2003. Figura sobejamente conhecida e admirada, aqui e no exterior, Vinicius se notabilizou em especial por sua atuação como letrista, compositor e também cantor de música popular. Primeiro, por sua parceria com o compositor Antonio Carlos Jobim e, depois, com outros grandes nomes da música brasileira, como Baden Powell, Carlos Lyra, Edu Lobo, Chico Buarque e Toquinho.

São famosos os seus poemas de amor, em especial os sonetos de feição clássica, alguns dos quais ele costumava ler durante os shows musicais. Também muito conhecidas são as suas baladas, composições em que o poeta brilha como hábil construtor de ritmos e rimas. No mesmo diapasão baladista, destaca-se o longo poema "O Operário em Construção", um clássico da poesia de participação social no Brasil.

Há também o Vinicius das Cinco Elegias, escritas entre 1937 e 1939. Textos de matriz erudita, as elegias marcam uma virada na escrita de Vinicius. Nelas, pela primeira vez, ele — que vinha de uma poesia etérea e idealista — começa a incluir em seu repertório as injunções do cotidiano. Só para lembrar, estão na "Elegia Desesperada" os famosos apelos em feitio de oração: "Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais / Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação."  Ou: "Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria / Que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos".

Como se vê, há muitos Vinicius que poderiam comparecer a este boletim. No entanto, preferi dar voz a um Vinicius menos festejado. Poesia completa na mão, selecionei três poemas. O primeiro é o sonetilho "Poética (I)", uma sucinta apresentação da arte poética na concepção do autor.

Depois, vem "História Passional, Hollywood, Califórnia".  Nesse poema longo, Vinícius esbanja criatividade, humor e crítica ao American way of life, na versão hollywoodiana. Vale observar que o poema tem andamento cinematográfico, com idas e vindas e momentos de tensão típicos dos roteiros de filmes. Tanto esse poema como o anterior foram escritos no final dos anos 40, quando o poeta, diplomata de carreira, serviu em Los Angeles, Califórnia.

Por fim, para encerrar o ano, o "Poema de Natal". Quem folhear a obra de Vinicius, vai encontrar outros poemas com o mesmo tema. Mas nenhum é tão profundo e  maduro quanto este. De Natal, mesmo, há aí muito pouco — e, explicitamente, só o título. A data foi apenas um ponto de partida para uma reflexão sobre a vida. "Pois para isso fomos feitos: / Para a esperança no milagre / Para a participação da poesia / Para ver a face da morte".


Um grande abraço, e até fevereiro.
Feliz 2008 para todos,

Carlos Machado



                      •o•


Veja também sobre Vinicius de Moraes os boletins:

- poesia.net 12

- poesia.net 300  

 



 


poesia.net entra
em recesso

A todos os leitores do poesia.net desejo um ano novo com muita saúde, paz e poesia.

Durante o mês de janeiro, o boletim não circulará. Espero retornar em fevereiro para nosso encontro semanal.


FELIZ 2008!
 

Para isso fomos feitos

Vinicius de Moraes

 



POÉTICA (I)

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
— Meu tempo é quando.
 



Só poetas: Drummond, Vinicius, Bandeira, Quintana e Paulo Mendes Campos,
na casa do cronista Rubem Braga. Rio de Janeiro, 1966

 

HISTÓRIA PASSIONAL, HOLLYWOOD, CALIFÓRNIA

Preliminarmente, telegrafar-te-ei uma dúzia de rosas
Depois te levarei a comer um shop-suey
Se a tarde também for loura abriremos a capota
Teus cabelos ao vento marcarão oitenta milhas.

Dar-me-ás um beijo com batom marca indelével
E eu pegarei tua coxa rija como a madeira
Sorrirás para mim e eu porei óculos escuros
Ante o brilho de teus dois mil dentes de esmalte.

Mascaremos cada um uma caixa de goma
E iremos ao Chinese cheirando a hortelã-pimenta
A cabeça no meu ombro sonharás duas horas
Enquanto eu me divirto no teu seio de arame.

De novo no automóvel perguntarei se queres
Me dirás que tem tempo e me darás um abraço
Tua fome reclama uma salada mista
Verei teu rosto através do suco de tomate.

Te ajudarei cavalheiro com o abrigo de chinchila
Na saída constatarei tuas nylon 57
Ao andares, algo em ti range em dó sustenido
Pelo andar em que vais sei que queres dançar rumba.

Beberás vinte uísques e ficarás mais terna
Dançando sentirei tuas pernas entre as minhas
Cheirarás levemente a cachorro lavado
Possuis cem rotações de quadris por minuto.

De novo no automóvel perguntarei se queres
Me dirás que hoje não, amanhã tens filmagem
Fazes a cigarreira num clube de má fama
E há uma cena em que vendes um maço a George Raft.

Telegrafar-te-ei então uma orquídea sexuada
No escritório esperarei que tomes sal de frutas
Vem-te um súbito desejo de comida italiana
Mas queres deitar cedo, tens uma dor de cabeça!

À porta de tua casa perguntarei se queres
Me dirás que hoje não, vais ficar dodói mais tarde
De longe acenarás um adeus sutilíssimo
Ao constatares que estou com a bateria gasta.

Dia seguinte esperarei com o rádio do carro aberto
Te chamando mentalmente de galinha e outros nomes
Virás então dizer que tens comida em casa
De avental abrirei latas e enxugarei pratos.

Tua mãe perguntará se há muito que sou casado
Direi que há cinco anos e ela fica calada
Mas como somos moços, precisamos divertir-nos
Sairemos de automóvel para uma volta rápida.

No alto de uma colina perguntar-te-ei se queres
Me dirás que nada feito, estás com uma dor do lado
Nervosos meus cigarros se fumarão sozinhos
E acabo machucando os dedos na tua cinta.

Dia seguinte vens com um suéter elástico
Sapatos mocassim e meia curta vermelha
Te levo pra dançar um ligeiro jitterbug
Teus vinte deixam os meus trinta e pouco cansados.

Na saída te vem um desejo de boliche
Jogas na perfeição, flertando com o moço ao lado
Dás o telefone a ele e perguntas se me importo
Finjo que não me importo e dou saída no carro.

Estás louca para tomar uma coca gelada
Debruças-te sobre mim e me mordes o pescoço
Passo de leve a mão no teu joelho ossudo
Perdido de repente numa grande piedade.

Depois pergunto se queres ir ao meu apartamento
Me matas a pergunta com um beijo apaixonado
Dou um soco na perna e aperto o acelerador
Finges-te de assustada e falas que dirijo bem.

Que é daquele perfume que eu te tinha prometido?
Compro o Chanel 5 e acrescento um bilhete gentil
Hoje vou lhe pagar um jantar de vinte dólares
E se ela não quiser, juro que não me responsabilizo...

Vens cheirando a lilás e com saltos, meu Deus, tão altos
Que eu fico lá embaixo e com um ar avacalhado
Dás ordens ao garçom de caviar e champanha
Depois arrotas de leve me dizendo I beg your pardon.

No carro distraído deixo a mão na tua perna
Depois vou te levando para o alto de um morro
Em cima tiro o anel, quero casar contigo
Dizes que só acedes depois do meu divórcio.

Balbucio palavras desconexas e esdrúxulas
Quero romper-te a blusa e mastigar-te a cara
Não tens medo nenhum dos meus loucos arroubos
E me destroncas o dedo com um golpe de jiu-jítsu.

Depois tiras da bolsa uma caixa de goma
E mascas furiosamente dizendo barbaridades
Que é que eu penso que és, se não tenho vergonha
De fazer tais propostas a uma moça solteira.

Balbucio uma desculpa e digo que estava pensando…
Falas que eu pense menos e me fazes um agrado
Me pedes um cigarro e riscas o fósforo com a unha
E eu fico boquiaberto diante de tanta habilidade.

Me pedes para te levar a comer uma salada
Mas de súbito me vem uma consciência estranha
Vejo-te como uma cabra pastando sobre mim
E odeio-te de ruminares assim a minha carne.

Então fico possesso, dou-te um murro na cara
Destruo-te a carótida a violentas dentadas
Ordenho-te até o sangue escorrer entre meu dedos
E te possuo assim, morta e desfigurada.

Depois arrependido choro sobre o teu corpo
E te enterro numa vala, minha pobre namorada...
Fujo mas me descobrem por um fio de cabelo
E seis meses depois morro na câmara de gás.




Vinicius de bronze na praia de Itapuã, onde morou o poeta, em Salvador



POEMA DE NATAL

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Vinicius de Moraes
•  Poesia Completa e Prosa
   
Aguilar, 2a. ed., 5a. reimpressão, Rio de Janeiro, 1986
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* Francisco Carvalho, "Palavras Mudam de Cor",
   in Memórias do Espantalho (2004)