«Poetas e escritores. / É assim que se diz. / Logo, poetas não são escritores, então o quê —» (Wislawa Szymborska) *
Antonio Brasileiro; André Caramuru Aubert; Líria Porto //
Déborah de Paula Souza; Ronaldo Costa Fernandes; Júlio Machado //
Iacyr Anderson Freitas; Marina Rabelo; Ésio Macedo Ribeiro; Sônia Barros
Amigas e amigos,
Este é o boletim n. 500. Impossível não prestar atenção a este número. Meu plano inicial era fazer coincidir esta quingentésima
edição com o aniversário de 20 anos do poesia.net, em 12 de dezembro. Contudo, o número de poetas que aceitaram
participar das comemorações foi maior que o esperado. Assim, tive de fazer uma
edição a mais — e o boletim dos 20 anos será o próximo. De todo modo, para
festejar este número redondo, temos aqui, desde já, uma surpresa poético-musical. Veja, mais abaixo, o bloco “Presente de Aniversário”.
Mas prossigamos. Esta é a quarta edição das comemorações dos 20 anos do boletim. Desta vez, estão aqui dez poetas,
todos com poemas inéditos. Mais uma vez, agradeço a todas e todos os poetas que prestigiaram esta publicação.
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Nestas cinco edições comemorativas, o nome de cada poeta é mostrado acima do poema, com a indicação da cidade onde vive. Além disso,
mais abaixo, dou o link para o último boletim individual em que cada poeta figurou. Lá, o leitor encontrará informações
biobibliográficas, além de outros poemas do/a autor/a.
Nesta edição, assim como nas três anteriores e na próxima, o título do boletim veio de um dos poemas. Aqui, a expressão
“Ao guardião das palavras” foi extraída do poema “Carta de Águas”, da paulistana Déborah de Paula Souza. Conforme se pode
constatar na leitura do poema, esse guardião é um poeta. Portanto, nada mais adequado, uma vez que as comemorações dos
20 anos do boletim são centradas nos poetas.
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AO SABOR DOS NÚMEROS
Muitas vezes, na trajetória do poesia.net, enfrentei a seguinte situação. Chegava o dia de soltar nova edição
do boletim e eu não tinha à mão nenhum poeta “boletinável”. Que fazer? Uma solução encontrada foi criar edições temáticas — vários
poetas já publicados no boletim reunidos em torno de um tema. Desses boletins temáticos já falei, duas edições atrás, no
n. 498.
Outra saída foi usar um método matemático para montar boletins, também com autores já publicados. Nesse caso, montei uma planilha
no Excel para gerar os termos de progressões aritméticas ou geométricas. Esses termos correspondiam aos números
dos boletins.
Então, de cada edição sorteada, eu escolhia um poema e assim montava o boletim, “ao sabor dos números”.
Você, das letras, não se espante com esse método esquisito: em algum momento do milênio passado, este boletineiro foi estudante
de engenharia. O certo é que tal procedimento permitiu a geração de dois boletins em momentos de vacas magras:
n. 428; e
n. 410.
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POESIA À MEIA-NOITE
Confesso: sempre mantive um pé-atrás em relação às redes sociais. Mesmo assim, amigos me convenceram de que todo mundo estava
aderindo a elas, inclusive muitos leitores do boletim. Então, em março de 2014, crei no Facebook a página poesia.net
(@avepoesia). Depois que defini os padrões da página, fiz
sempre publicações à zero hora. No mínimo, um cartão poético diário, exceto nas quartas-feiras. Nestas, o espaço é ocupado pelo
link para um boletim, novo ou antigo, no site Alguma Poesia.
No entanto, após as últimas mudanças, o Facebook não permite mais que se agendem links para sites fora de suas páginas.
Agora, esses links podem ser publicados na hora, porém não agendados. Assim, os boletins, que apareciam sempre à meia-noite
de quarta-feira, passaram a ser postados em horas meio incertas (em geral, antes da meia-noite), já que exigem minha presença.
Por isso, várias vezes já me esqueci de publicar. Então, para não deixar o dia vazio, passei a programar cartões
poéticos também para as quartas-feiras, haja ou não boletim.
Na edição n. 486 (maio, 2022), o
boletim apresentou a poesia do mineiro Marcílio Godoi. Ao comentar o
texto “Ana Lis”, escrevi:
“‘Ana Lis’ é um poema musical, cheio de ritmo e rimas. [...] Não entendo de música, mas penso que essa
Ana Lis está pedindo para ser musicada [...]”
Pois bem, agora em outubro, o cantor e compositor paulista Osmar Lazarini, o
Sonekka (foto), meu amigo e ex-colega na Editora Abril,
enviou-me um arquivo MP3 com a “Ana Lis” musicada. Corri para apresentar a
novidade ao Godoi, autor do poema.
Essa canção é um verdadeiro presente de aniversário para o poesia.net, que indiretamente
participou da parceria musical. Agradeço, emocionado, ao Sonekka e a seu novo
parceiro, Marcílio Godoi.
Além de compor a melodia, cantar, tocar e fazer os arranjos, Sonekka — o homem dos mais de sete instrumentos —
ainda produziu, para esta edição n. 500, um belo videoclipe com “Ana Lis”. Veja-o no final deste boletim.
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Ao guardião das palavras
• Antonio Brasileiro
• André Caramuru Aubert • Líria Porto • Déborah de Paula Souza
•
Ronaldo Costa Fernandes • Júlio Machado
• Iacyr Anderson Freitas • Marina Rabelo
• Ésio Macedo Ribeiro • Sônia Barros
poesia.net - 20 anos [4]
Poetas desta edição: Antonio Brasileiro; André Caramuru Aubert; Líria Porto //
Déborah de Paula Souza; Ronaldo Costa Fernandes; Júlio Machado // Iacyr Anderson Freitas;
Marina Rabelo; Ésio Macedo Ribeiro; Sônia Barros
• Antonio Brasileiro Feira de Santana, BA
SENTADO AQUI
Hoje não quero fazer nada.
Vou só estar sentado aqui.
A ler, talvez, um livro
delicado.
) A conversar, quiçá,
com os bem-te-vis
e as nuvens esquecidas
de passar. (
Não peças jamais à vida
compreendê-la.
Vês? Aquela estrela
apenas brilha.
• André Caramuru Aubert São Paulo, SP
DOMINGOS
acordar naqueles domingos vazios,
domingos que seriam vazios, dias
ocos. acordar naqueles domingos
em que o tédio e a solidão seriam a companhia,
a preocupação. acordar naqueles dias,
as paredes brancas manchadas do apartamento, não
ter o que fazer, para quem ligar, com quem
sair. acordar naqueles domingos, ainda
me lembro.
Tarsila do Amaral, pintora paulista, Autorretrato (1923)
• Líria Porto Araguari, MG
IMPOSIÇÃO
morria de medo da morte
resolvi matar a morte
sangrei a morte de morte
um punhal fino e cruento
e a morte não morreu
condenei a morte à forca
mas a corda que eu usava
com toda a força que tinha
enrolou-se-me ao pescoço
fui eu que quase morri
ofereci-lhe veneno
um copo cheio de morte
a morte bebeu a morte
e a morte não morreu
brincava a morte com o gelo
(existe a lei do mais forte)
• Déborah de Paula Souza São Paulo, SP
CARTAS DE ÁGUA
Para Carlos, o Algum
Escrevo ao guardião das palavras
Ao bebedor das águas
elevo a primeira taça
aos que recolhem a beleza
e as facas afiadas
Escrevo ao poeta escutador
aquele buda que contempla
nosso trapézio sem rede
(senhor, escutai a nossa sede)
Escrevo ao mercador
de chá de artemísia
ao viajante mentiroso
que viu a manhã
antes das manhãs
e articulou o cosmo com as fábulas
e as fábulas ao espaço ambíguo
dos voos e dos vidros
socorrendo assim
a todos nós
que chegamos vazios
com seu vazio muito maior
imenso, oco
seu estado de caverna e mulher
suas pirambas de amor
Dirijo-me ao monge
de cabeça raspada
e ao detento fugidio
que entrou e saiu
de todas as prisões
(e soprou o silêncio
na boca da noite)
Esta nuvem carregada
contém caixa de lágrimas
pedriscos, folhas, cantigas de riachos
uma figa de jade e aquela orixá
de vestido dourado
(vai tudo nesse bornal
de papel de pão)
Ao destinatário do enigma
segue o genoma da chuva
e a espiral de anunciação
Isso que vai acontecer
inscreve-se na contração:
idioma fluente
virada de luas
palavras de água
agora tuas
Tarsila do Amaral, Cartão postal (1929)
• Ronaldo Costa Fernandes Brasília, DF
MINHA VENDEIA
Sou antes de tudo um fraco.
Meu quintal
tem muitos sertões.
Em minha Vendeia apontam
variados canhões Krupp.
Esta é a minha favela,
e seus batalhões de secas.
Em cada palavra
que se nega
há um genocídio de recusas.
Nem sempre são bons
os conselhos de Antônio Conselheiro.
• Júlio Machado Niterói, RJ
QUARTA CANÇÃO DO EXÍLIO
A imigrante brasileira
que trouxe no bolso um broto
de boldo disse: ó Lisboa,
és boa como um tumor
que fenece e se esboroa.
Tarsila do Amaral, Figura em azul (1923)
• Iacyr Anderson Freitas Juiz de Fora, MG
UM SONETO DA SÉRIE “PEQUENOS PLÁGIOS PARA A POSTERIDADE”
LIRA USUFURTUÁRIA: Camilo Pessanha
Foi um dia de inúteis agonias.
Dia de sol, de overdoses de sol.
Aqui devo escrever: espadas frias
retalharam de nuvens meu lençol.
Foi um dia de falsas alegrias.
Eu mesmo ostentei a custo um sorriso.
Um só. Longe passaram romarias
e em mim tudo foi feito de improviso.
Dia imprestável mais que os outros dias,
tão cheio de soberba e sobreaviso.
Difuso de teoremas, de teorias,
com pedágios vedando o paraíso.
Um dia assim, de inúteis agonias,
me impõe o que para me impor preciso.
• Marina Rabelo Natal, RN
[TENHO CHORADO]
tenho chorado
no meio da rua
dentro do carro
ao telefone
com estranhos
falo em voz alta
do luto
da falta
o coração despedaçado
à espera de uma palavra
que conforte
que nunca é
o suficiente
todas as águas
vivas
correm
se atormentam
dentro de mim
queimam
Tarsila do Amaral, O mamoeiro (1925)
• Ésio Macedo Ribeiro Chicago,
EUA
DA PANDEMIA VII
Um me diz que tem chorado todos os dias.
Outro, que seu parceiro de trabalho se suicidou.
Aquela, lá, avisa que não está dormindo bem.
Uma prima disse que nunca mais vai viajar.
Tem um que disse não descer mais pelo elevador.
Outro rapaz, que resolveu fazer um curso para ser corretor de imóveis.
Ela, aquela moça, que tem medo de perder o emprego.
Um fotógrafo, que não pega nenhum trabalho há mais de quatro meses.
Alguns reclamam de uma louca gritando pelas ruas.
A vizinha revolta-se com as sacolas de compras na porta do vizinho escritor.
Um outro, que tem medo de que a mãe contraia o vírus.
Aqueles todos, que irão à praia sem medo nenhum.
Uns põem máscaras, mas não são bandidos.
• Sônia Barros Santa Bárbara d’Oeste, SP
RETRATO REVISITADO
Diante de uma tela de Jules Breton,
o rapto,
uma sensação
de febre
trazendo à memória
o retrato
da mãe e de outras tantas mulheres
trabalhando na terra como se fossem leves
os fardos,
e o sol não as queimasse
por dentro.
••• ————— Ana Lis, a canção ————— •••
Sonekka, “Ana Lis” (Sonekka / Marcílio Godoi)
ANA LIS
ana lis, me diz.
o que foi feito da gente
quando a gente era feliz?
e não pensava no tempo
do relógio da matriz?
ana lis, me diz.
aonde foram dar nossos sonhos
de desenho feito a giz?
ficou alguma ferida
resistindo à cicatriz?
ana lis, me diz,
ainda existe no mundo
o direito a pedir bis
das coisas que não valeram
quando eu era inda aprendiz?
ana lis, me diz,
nunca tive sossego
por ter feito o que eu não fiz
por onde levo a esperança,
por acaso ou por um triz?
ana lis, responde, please.
Marcílio Godoi, in Estados Úmidos da Matéria (Patuá, 2016)
poesia.net - 20 anos - Poetas participantes nesta edição:
• Antonio Brasileiro • André Caramuru Aubert • Líria Porto
• Déborah de Paula Souza • Ronaldo Costa Fernandes • Júlio Machado
• Iacyr Anderson Freitas • Marina Rabelo • Ésio Macedo Ribeiro • Sônia Barros
Poemas inéditos, cedidos pelos autores para a comemoração dos 20 anos do boletim.
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Wislawa Szymborska, "Medo do Palco", in Um Amor Feliz (2016), trad. Regina Przbycien
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* Imagens: quadros da pintora paulista
Tarsila do Amaral (1886-1973)